Em alguns casos uma possível resposta, ou melhor, um posicionamento aceitável diante de questões de ordem ontológica, que demandam pelo ser, pelo fundamento daquilo que é, pode ser alcançado pela via negativa. Ou seja, por aquilo que não é. Mas, afinal, o que é o mundo? Talvez se possa considerar que o mundo não se apresenta naquilo vemos, sentimos, tocamos, ouvimos ou cheiramos. Há limites para os nossos sentidos diante das multiplicidades de formas de existência que se apresentam, externas à nossa condição. Há reações físico-químicas que nossos sentidos, em sua limitada condição, não captam de forma suficiente.
Ainda, nesta direção, também se pode considerar que o mundo não é aquilo que imaginamos e/ou idealizamos. Nas idealizações, tendemos a expurgar as formas que não se encaixam nas projeções que realizamos. Mas, o mundo também não é obra da ciência. Inúmeras são as ciências em sua conformação moderna e, seus campos científicos. O método científico é exigente e pretende a objetividade sobre a particularidade objetiva a qual se vincula uma determinada ciência. Ou dito de outra forma, a ciência se constitui numa multiplicidade de discursos científicos vinculados as especificidades dos objetos de investigação das mais diversas áreas em suas particularidades. Seria pretensão demandar uma compreensão científica unificada do mundo. São teorias, que em suas particularidades explicitam aspectos pontuais, objetivos de fenômenos que se apresentam no tempo e no espaço. Talvez o mundo seja obra da criação, de um ser absoluto que em sua absolutidade contém o mundo e tudo o que nele existe. Mas, aqui entramos no campo da fé. Não há provas materiais. Há apenas a crença, ou a não crença.
Mas, o que é o mundo? Ele existe? Não existe? A politóloga alemã Hannah Arendt (1906 – 1975) e, nesta direção acompanhada pelo filósofo e jurista italiano Giorgio Agamben (1942 …), argumenta – preservadas suas especificidades teóricas e conceituais – que o mundo é o que se estabelece no entremeio das relações humanas. O mundo se constitui no reconhecimento do rosto do outro. É manifestação da cumplicidade, do comprometimento com outro na constituição de um espaço comum que acolha e promova a vida. Ou ainda, o mundo resulta de seres humanos que fazem a experiência da palavra, que manifestam em cada situação a intensidade das relações vivenciadas, que testemunham a necessidade de preservação destas experiências no mundo. Assim, o mundo pode ser concebido como a experiência da palavra e do testemunho conjunto que promove o humano. Na obra: “A Condição Humana”(1991) aprofunda o argumento: “Se o mundo deve conter um espaço público, não pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos: deve transcender a duração da vida de homens mortais”. A palavra, o rosto, o outro, o espaço público é o que constitui o humano e o mundo que guarda as experiências dos mortos, promove as experiências presentes e, garante a experiência humana às futuras gerações. Desconsiderar tais pressupostos ontológicos é expressão de embrutecimento, de violência gratuita que destrói o mundo.
Definido sob tais parâmetros constata-se a fragilidade do mundo. Afetada a possibilidade da experiência da palavra, do testemunho, se afeta frontalmente o mundo. Embrutecidos se tornam os seres humanos. Irreconhecível se apresenta o rosto do outro. O compartilhamento do mundo e a promoção da condição humana se esvaem no insulamento do indivíduo. A violência se expressa agora nos diversos usos da linguagem para a produção e consumo de mentiras (fake news) pelas massas, massificadas na expressão de suas “opiniões supostamente, ou desavisadamente ditas públicas”. Não pode haver espaço público onde a experiência da palavra não encontra terreno suficiente para manifestação e compartilhamento do mundo. Assim, a “opinião pública” é eufemismo, uma escandalosa contradição entre termos.
O fascismo é a expressão das mais diversas formas de violência que agridem e destroem as possibilidades de se fazer a experiência compartilhada da palavra. É manifestação em embrutecimento das relações desconsiderando o rosto do outro e aniquilando a possibilidade de compartilhamento de um mundo, resultado da ação comum. O fascismo e os fascistas disseminam a violência em suas diversas formas. Utilizam sobejamente a mentira, desmoralizando a experiência comum por meio da palavra. Desestruturam instituições. Alimentam o nacionalismo em seus fundamentos raciais. Apontam inimigos a serem extirpados. Exortam seus asseclas para que se armem em função da “grande cruzada” de salvação nacional. Difamam a política como ação humana marcada pela corrupção, pela sujeira, pela velhacaria. Escondem a importante lição de Maquiavel que exortava no século XVI: “A política não nos garante o céu, mas nos livra do pior dos infernos”. Enlamear, achincalhar, detratar a política é negar às pessoas a compreensão de que é por meio dela que se faz possível, necessário e, desejável a experiência da palavra e do cuidado com o mundo. E assim seguem os fascistas, entre tantas outras estratégias de destruição do mundo e, por extensão, promovendo o sofrimento humano.
Hannah Arendt descreveu de forma clarividente as formas de manifestação do fascismo em sua portentosa obra e, mais especificamente no livro: “As origens do totalitarismo”. Afinal, estes movimentos não são novos. Não se trata ingenuamente “de uma nova direita”. Se trata pura e simplesmente da velha direita, com todo seu rancor em relação a palavra, a política, a possibilidade de compartilhamento de um mundo comum. Esta velha direita, que no plano econômico, professa a “liberdade de mercado”, mas no plano político sorrateiramente e, até explicitamente, expressa ódio à democracia, aos direitos individuais, sociais e difusos. Esta mesma velha direita, que promoveu, no seio das “democracias liberais de mercado” do início do século XX, as pavorosas atrocidades dos campos de batalha, da morte de civis, dos campos de concentração. No prefácio do livro: “Homens em tempo sombrios”, Arendt argumenta que essa destruição da experiência compartilhada da palavra e do mundo acontece em plena luz do dia, a olhos vistos de todos.
Eminências pardas. Intérpretes objetivos do fascismo em curso. Racionalidades instrumentais agarradas ao seu pretencioso objetivismo científico como expressão da verdade, a partir da evidência dos fatos, como se eles existissem em si mesmos independente dos sentidos, das idealizações, dos costumes, das tradições, dos conceitos, dos preconceitos, das relações de poder, das circunstâncias que constituem a vida do detentor da verdade. Assim, o que caracterizam os “Homens em tempos sombrios”, diferente da gritaria da patuleia ensandecida, estimulada pelo fascismo é o empenho com que cotidianamente produzem discursos “objetivos” de justificação da decomposição do mundo e, da violência generalizada que dele emana.
Nessa direção, a experiência compartilhada da linguagem permite a construção do mundo com inúmeras características ou, mais precisamente, a construção de inúmeros mundos. Contudo, as contingências e as lutas de forças, pelos mais diversos indivíduos com seus objetivos variáveis, culminaram, neste exato momento, na construção de um mundo no qual o fascismo é favorecido em detrimento da construção de uma esfera pública. Um fascismo recheado de argumentos econômicos, dotados de objetividade e alheios ao verdadeiro reino das necessidades (o reino da sobrevivência do animal humano). Há, certamente, também uma miríade de possibilidades de oposição, resistência e revoluções. Em todo caso, é imprescindível notar como este “mundo” é produzido por meio de palavras de ordem, inerentes à “doutrina do choque” referida pela politóloga estadunidense Wendy Brown (1955 …), as quais justificam e são justificadas por meio das palavras “crise” e “economia”[i] – quiçá as palavras mais compartilhadas intersubjetivamente na atualidade.
Diante da constatação de que milhares ou, talvez, milhões de brasileiros foram forçados a substituir o consumo de carne pelo consumo de ossos, os economistas de plantão perceberam a “oportunidade”. Antes doados para animais, agora consumidos por humanos, os ossos se tornaram o novo produto do fascismo economicizado tupiniquim[ii]. A “crise” pode ser notada em quatro atos. Primeiro, o lucro bilionário dos bancos começa a bater novo recorde, conforme demonstra a alta de 12% nos lucros do Santander[iii]. Segundo, a mídia de massa começa a passar pano para a “crise” (rectius: ultra ricos que comandam as “políticas econômicas”), ensinando diuturnamente os pobres a comer frutas e ossos para substituir a carne, cujo valor se tornou inacessível[iv]. Terceiro, a pretexto de “frear a inflação”, as taxas de juros são aumentadas, de modo que será também reduzido o acesso a produtos e serviços por milhões de brasileiros endividados[v]. Quarto, moradora de comunidade afirma que policiais furtaram carne armazenada no freezer durante o cumprimento a um mandado de busca[vi].
Tudo isso novamente prova que crises não são fatores acidentais nos cálculos econômicos, mas projetos político econômicos muito bem executados e assegurados pelas agências estatais controladas por ultra ricos ou pelos seus asseclas, com a conivência, total ou parcial, dos “fiscais da legalidade”. Dito de outro modo, a guerra civil é generalizada por meio da introdução da concorrência entre todos, inclusive contra si[vii], concorrência que é a “nova razão do mundo” no capitalismo de verniz neoliberal[viii], criada por meio de leis e incitada por meio da liberdade e de inúmeras tecnologias de saber e estratégias de poder, inclusive com possibilidade de exposição e de exploração do inconsciente por meio da captura de dados via plataformas e aplicativos de internet[ix].
[i] “’Crise’ e ‘economia’ atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. ‘Crise’ hoje em dia significa simplesmente ‘você deve obedecer!’. Creio que seja evidente para todos que a chamada ‘crise’ já dura decênios e nada mais é senão o modo normal como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um funcionamento que nada tem de racional.” SALVÀ, Peppe. “Deus não morreu. Ele tornou-se dinheiro” | Entrevista com Giorgio Agamben. Trad. Selvino J. Assmann. Blog da Boitempo, São Paulo, 31 ago. 2012. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2012/08/31/deus-nao-morreu-ele-tornou-se-dinheiro-entrevista-com-giorgio-agamben/
[ii] https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2021/10/08/placa-de-acougue-de-sc-sobre-venda-de-osso-e-retirada-apos-fiscalizacao.ghtml
[iii] https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/10/27/santander-tem-lucro-de-r-427-bilhoes-no-3o-trimestre.ghtml
[iv] https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2021/10/27/prato-colorido-como-aprender-a-gostar-de-frutas-legumes-e-verduras.ghtml
[v] https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/10/27/bc-deve-acelerar-ritmo-e-elevar-juros-nesta-quarta-ao-maior-nivel-em-quatro-anos-preve-mercado.ghtml
[vi] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/10/27/moradora-de-parada-de-lucas-mostra-casa-revirada-e-acusa-pms-de-abuso-em-acao-no-complexo-de-israel-quebraram-tudo.ghtml
[vii] “Cada corpo, para se tornar sujeito político no seio do Estado moderno, deve passar pela transformação que o constituirá como tal: ele deve começar por deixar de lado suas paixões (inapresentáveis), seus gostos (ridículos), suas inclinações (contingentes), e, em vez disso, deve se dotar de interesses, estes que não só são mais apresentáveis, como também mais representáveis. Assim, portanto, cada corpo, para se tornar sujeito político, deve proceder à sua autocastração como sujeito econômico. […] No lugar das formas-de-vida, aqui encontramos, de maneira quase paródica, subjetividades, uma superprodução ramificada, uma arborescente proliferação de subjetividades. Nesse ponto, converge a dupla aflição da economia e do Estado: a guerra civil se refugiou em todos, o Estado moderno colocou todos em guerra contra si mesmos.” TIQQUN. Contribuição para a guerra em curso. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. São Paulo: N-1, 2019, p. 66-67 e 69-70.
[viii] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo. 2016.
[ix] “A partir do big data é possível extrair não apenas o psicograma individual, mas o psicograma coletivo, e quem sabe até o psicograma do inconsciente. Isso permitiria expor e explorar a psique até o inconsciente.” HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Trad. Maurício Liesen. Belo Horizonte: Âyiné: 2018, p. 36.
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