“É importante ver, com os dois olhos, os dois lados para mudar uma única realidade, a que temos”. Jamais existirá prosperidade em uma sociedade insensível a humidade do outro, que tem fome, que está impedido, trancafiado, “sub-vivendo”. Nunca, de fato, unidade em nação qualquer poderá ser construída no diversionismo. Como disse, certa vez, Herbert José de Sousa, o Betinho, autor também da frase que abre este pensamento, “um país não muda pela sua economia, sua política e nem mesmo sua ciência; muda sim pela sua cultura”.
Ignorar e desconhecer a própria história é brincar de ciranda no precipício. Ciclicamente as coisas se repetem, os problemas mudam de nome, de personagens… as dores continuam iguais, aguardando o momento para surgirem. Quem nunca viveu uma situação de errar e voltar a cometer o mesmo erro? Por isso, é tão importante olhar para o que passou com os olhos contemplativos de quem deseja construir um caminho diferente. A evolução da civilização foi, até hoje, exatamente assim: um loop de cenas parecidas que poderiam indicar como construir um lugar melhor para viver. No Brasil, por exemplo, desde a colônia, de tempos em tempos descobrimos os fantasmas das dívidas, fome e inflação.
Já escrevi outro dia sobre isso: minha geração e as que vieram depois foram abençoadas por crescer sem viver a forte hiperinflação que nossos país e avôs enfrentaram. Sem dúvida tivemos a sorte de um ganhador na loteria, por encontrar um pouco menos de hostilidade na variação de preços em um longo período. Este é um dos motivos que dói tanto para os nascidos após 1985 a perda de poder de compra do dinheiro. Se a inflação é mundial, aqui sofremos mais por não fazer o dever de casa no momento de quietude global. Para ficar apenas em um dos culpados, de 2019 pra frente o Governo brasileiro fez um esforço imenso para destruir a moeda local, conseguindo colocar o Real entre as piores e menos valorizadas moedas do planeta.
Nesta dança insana com o abismo, ressuscitamos um monstro que estava enterrado e que jamais poderia sair de sua tumba. A fome é de todos o mais perverso dos problemas para um indivíduo e sociedade. Não existe perspectiva alguma, desejo ou capacidade de viver para alguém que não tem um misero grão para comer. A classe média e os mais ricos não conseguem entender que é da fome e da falta de espaço para mudar a realidade que nascem as crianças nas ruas, as famílias desestruturadas, os transtornos/ conflitos sociais, a violência. Para 55 milhões de invisíveis brasileiros a verdade é não ter o suficiente para alimentar o seu e os seus. Estima-se que 25% do moradores de Blumenau, de Santa Catarina, do Brasil estão passando fome. Engula isso, meu caro orgulhoso patriota.
“Quem tem fome, tem pressa”, já diria Betinho. Uma demonstração clara que não ter segurança alimentar afeta profundamente o cidadão está no recente levantamento do Ipec para o iCS (Instituto Clima e Sociedade). Acredite: para 22% dos brasileiros foi necessário trocar o pagamento da conta de luz pela compra de comida e, agora, além da fome precisam conviver com a mais primitiva escuridão.
Com um crescente número de humanos jogados na miséria, qual seria o caminho para a virada de página no Brasil? Não tenho talentos para soluções fáceis. Vejo, porém, um obstáculo que pode crescer e empurrar toda sociedade para um buraco ainda mais profundo. As dívidas são, sem dúvida, a nova forma de escravidão no mundo. Ninguém é verdadeiramente livre se possui um carnê, uma mensalidade, uma fatura de cartão de crédito, um financiamento qualquer para pagar. Em uma visão bastante prática diria que as escolhas do indivíduo são pautadas pelos desejos antecipados por um cartão crédito.
Hoje, 70,9% dos brasileiros estão com sua renda comprometida com alguma dívida, segundo a Confederação Nacional do Comércio (CNC). Número que é recorde histórico e, em algumas regiões, é ainda maior. Estima-se que nas maiores cidades uma pessoa possui, em média, 8 meses de ganhos comprometidos com dívidas. Milagres podem não existir, porém, é evidente que trabalhar soluções para destravar a renda das famílias permitiriam ajudar a oferecer oportunidades para o cidadão necessitado e ajudar no crescimento do país.
Como escrevi, neste longo pensamento, a história deixa para o futuro um rastro de ensinamentos. Para mudar o país precisamos, primeiro, mudar esta cultura de ignorar as lições do passado.
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