Opinião – Desnudando um modelo geopolítico

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O teórico político e importante membro do Partido Comunista Chinês, Wang Huning, argumentou de forma a gerar reflexão que, para compreender a estratégia nacional americana, é preciso primeiro compreender o modelo de nação dos EUA: isto é, olhar de perto seu modo de vida antes de dar credibilidade ao que aparece nas publicações “geopolíticas” de seus think-tanks.

Ainda segundo Huning, sua estadia nos Estados Unidos na segunda metade dos anos 80, o permitiu concluir que o fundamento da vida americana reside na ideia de riqueza ou prosperidade. Tal prosperidade (aparente ou real) só se mantém por meio do fluxo contínuo de capital estrangeiro para o interior dos cofres americanos. E, para que este fluxo de capital permaneça constante, é fundamental que a posição hegemônica do dólar não seja ameaçada em nenhuma circunstância. Esta, segundo Huning, é a chave de poder que sustenta os EUA fortes e prósperos até o momento.

Isto, inevitavelmente, nos leva a seguinte pergunta: como foi possível alcançar tal posição? A resposta está no seio da história contemporânea. No início da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos eram um país altamente endividado. Com o término do conflito, porém, os Estados Unidos se tornaram um credor global.

É evidente, os EUA compreenderam a guerra exclusivamente como um empreendimento econômico, justamente em um período em que os impérios tradicionais europeus ainda se atinham à ideia de triunfo determinado única e exclusivamente pela força dos exércitos no campo, portanto, claramente se tornando incompatíveis com a base econômica do capitalismo.

Isso significa que a Primeira Guerra Mundial pode ser considerada o primeiro conflito em que o fluxo de capital foi mais decisivo do que o fluxo de sangue derramado. Os Estados Unidos, inclusive, só interferiram militarmente quando o cenário indicava que não haveria diferença considerável entre vencedores e derrotados, pois todos sairiam militarmente maculados. Isto se deve ao fato de que o verdadeiro objetivo americano era desalojar a Grã-Bretanha de sua condição de potência hegemônica militar marítima (o que Dugin chama de atlantismo) em nível global. O escopo mencionado só poderia ser contemplado após a Segunda Guerra Mundial e após a própria Grã-Bretanha (graças ao que eventualmente seja equivocadamente propalado como um grande político e estrategista, Winston Churchill) ter dado substancial contribuição para seu suicídio militar e diplomático, assim como de toda a Europa.

O ano de 1971 é também crucial no desenrolar da história contemporânea e, sem dúvida, igualmente para subsidiar esta análise. Naquele ano, o Presidente Richard Nixon determinou o fim da “janela dourada”, quebrando o lastro entre o dólar e o ouro e rompendo com o acordo firmado em Bretton Woods. A partir do anúncio do fim do acordo de Bretton Woods, os Estados Unidos angariaram a capacidade abstrata de imprimir dólares de modo ilimitado. Mais do que isso, com o término do conflito árabe-israelense em 1973 e um posterior acordo com a OPEP, os Estados Unidos amarraram o dólar na dinâmica do comércio internacional petrolífero, transformando sua moeda oficial no único “lastro” para o acordo internacional do comércio de petróleo.

Com essa ação, a diplomacia americana determinou um novo zeitgeist mundial, uma vez que se consolidou a ideia de que é preciso ter dólares para comprar petróleo. Desse modo, precisar de petróleo, automaticamente significa precisar de dólares para adquiri-lo. Acompanhando esse desenrolar dos fatos da época, podemos dizer que a globalização econômica é uma consequência direta da globalização do dólar.

Se debruçando mais sobre o modelo de manutenção da hegemonia do dólar, desde a década de 1970, os Estados Unidos vêm alocando indústrias de baixo e médio nível para países em desenvolvimento (o que impele o consumo do meio ambiente e dos recursos), segurando em seu território apenas os complexos industriais com alto valor agregado em termos tecnológicos. As consequências danosas dessas políticas foram sentidas pela própria economia dos EUA quando eclodiu a crise de 2007, desnudando seu caráter altamente “virtual” em detrimento do setor manufatureiro. Aspecto que tanto as administrações Obama como Trump tentaram e falharam em contrabalançar.

Tudo isso significa dizer que a manutenção da posição hegemônica dos Estados Unidos estará, até onde for possível, fundamentada na capacidade de Washington em concentrar o fluxo de capital internacional em seu território, erigindo crises geopolíticas e, consequentemente, eliminando potenciais concorrentes.

Os argumentos elencados até aqui podem ser facilmente aplicados à crise ucraniana de 2014, que eclodiu numa época em que os EUA, tal como agora, não desejavam de modo algum que o capital permanecesse ou fosse investido na Europa. A melhor maneira de evitar isto era criar uma crise regional. Uma crise que também forçava a Europa a se juntar aos Estados Unidos na imposição de sanções à Rússia.

Aqui também entra em jogo outro aspecto. O reconhecimento russo das repúblicas populares de Donetsk e Lugansk tem um objetivo duplo. Isto está relacionado tanto a uma reafirmação do “espaço vital” russo (sim, nos termos de Friedrich Ratzel), quanto a um projeto mais ambicioso de aceleração para uma reformulação da ordem global. Parece evidente, portanto, que a opção russa também pretende representar um desafio aberto ao modelo unipolar.

A este respeito, no entanto, creio que cabe uma reflexão bastante necessária para quem, eventualmente, olha para a Rússia com esperança excessiva. Ainda que a Rússia seja um desafiante de peso à manutenção da ordem unipolar, ela naturalmente persegue seus próprios interesses nacionais. Não será a Rússia que salvará a Europa ou reestabelecerá o jogo geopolítico mundial. Contudo, no caso específico da Ucrânia, é justo dizer que Putin tem o mérito de confrontar a Europa com um fato consumado e elucidar ainda mais o papel nocivo da Aliança Atlântica como um instrumento de adestramento e coerção do Velho Continente.

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