Opinião | Como se justificam as normas?

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Na reflexão deste final de semana retomo a discussão de meu texto do mês passado, visando colaborar na democratização do conhecimento em especial no que concerne ao esclarecimento de posicionamentos e rótulos políticos, para a preparação dos debates inerentes às eleições que se aproximam. Sobre o título desse texto, proponho pensarmos a partir de dois posicionamentos: o liberalismo e o comunitarismo, dois modos de entender a justificação dos princípios de justiça, posicionamentos esses que têm promovido intensos debates nas últimas décadas.

Para além de uma multiplicidade de conflitos internos em cada uma dessas concepções, liberalismo e comunitarismo, de modo introdutório e em linhas gerais, é possível distinguir as duas posições a partir de respostas à pergunta: “como se justificam as normas?” Nesse sentido, pode-se dizer que, para um liberal, a justificativa para uma norma é a partir da primazia do justo, baseado em direitos fundamentais. Já para um comunitarista, a primazia é a do bem, baseado em um contexto comunitário, em uma noção comunitária do que seria o bem.

Chamo à atenção em especial para a distinção entre o âmbito ético e o âmbito jurídico. Ao âmbito ético, nesse debate, me refiro aqui a concepções comunitárias de bem, como, por exemplo, em se tratando de doutrinas religiosas. Ao âmbito jurídico me refiro à essas mesmas pessoas enquanto submetidas às normas jurídicas. Se trata, portanto, da pessoa do direito, se trata da comunidade jurídica.

Uma mesma pessoa possui concepções individuais do que seria o bem, um contexto histórico e social no qual se relaciona com outras pessoas que partilham em alguma medida de uma concepção coletiva de bem e, ao mesmo tempo, estão protegidas de um ponto de vista jurídico de outros indivíduos e grupos que possuem concepções diferentes de bem, o que auxilia a tarefa de tornar possível a convivência de grupos com concepções distintas.

Para justificar uma norma, um comunitarista admitiria uma fundamentação pautada em concepções de bem mesmo que não universalizadas. Já um liberal apenas admitiria como fundamentação o que é o justo a partir dos direitos fundamentais, como o direito à própria vida ou o direito à liberdade, por exemplo, independente do contexto ou de concepções de bem, ou concepções éticas da comunidade à qual tal norma se aplicaria.

Contra os liberais, os comunitaristas criticam, por exemplo, que a própria prioridade de direitos fundamentais implica uma concepção de “bem”. Ao valorizar, por exemplo, oportunidades iguais, nisso já estaria exposta uma noção de “bem” a partir da qual se fundamenta a norma. Ou, ainda, criticam os comunitaristas que, os liberais ignorando o contexto, na pretensão de uma norma jurídica ser eticamente neutra, corre-se o risco de ignorar também demandas de contexto que carecem de um tratamento diferenciado dadas as disparidades históricas e sociais, o que não necessariamente é resolvido somente priorizando os direitos fundamentais.

Por outro lado, os liberais costumam apontar possíveis dificuldades na teoria dos comunitaristas, dificuldades como, por exemplo, sobre de que modo valores éticos comunitários, mas de vários grupos que possuem perspectivas diferentes do que seria o bem podem fundamentar uma norma geral com a pretensão de proteger todos os grupos e subgrupos envolvidos sob o manto jurídico.

A partir dessas linhas gerais, pode-se perceber que, ao reivindicar uma pauta normativa baseando como justificativas concepções comunitárias de bem, historicamente e contextualmente limitadas, a iniciativa não se apresenta como liberal e caminha mais em direção a uma abordagem de sombra comunitarista. E, como mencionei em meu último artigo, o de abril, em se tratando também de questões econômicas, o que é ser um liberal mais uma vez está longe do “espantalho” que se vê atualmente na fala de atores políticos como sendo liberalismo.

É possível encontrar ao ligar o jornal ou ouvir um discurso político, inclusive com facilidade, falas e atitudes travestidas de liberalismo que, se analisadas, não se identificam com os princípios liberais. Longe da pretensão de classificar quem de fato é liberal no Brasil em discursos e ações atualmente, a ideia hoje é tão somente mostrar que, por trás de um termo tão amplamente utilizado em disputas políticas, há uma tradição de discussão e debates que carecem serem levados em consideração para que possamos minimamente nos entender sobre o sentido do que está sendo dito.

Seja tendo em vista a concepção (de influência platônica) de que os termos participam de uma essência eterna e imutável que se impõe a nós dando sentido às palavras, ou, ainda, seja a partir de uma perspectiva como a que encontramos em Nietzsche ou mesmo em Wittgenstein de que no fim das contas não há nada disso e sim se trata de um combinado entre nós sobre o sentido com o qual na prática utilizamos cada um dos termos, o que importa aqui destacar é que, para que possamos entender do que estamos falando, precisamos ter claro ou a essência (no caso de um) ou a que combinado (no caso dos outros) estamos a fazer referência. Diferente disso, seria apenas emitir sons pela boca sem que tais sons fizessem sentido.

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