Opinião | Complexo do Alemão, educação e desenvolvimento nacional

Foto: Rafael Campos/Reprodução

Há alguma relação entre as 18 (dezoito) pessoas executadas (consideradas suspeitas) no dia 22 de abril de 2022, pelas forças coercitivas (polícia civil e militar) do Estado do Rio de Janeiro no Complexo do Alemão na cidade do Rio de Janeiro com um debate  sobre acesso a educação e ao desenvolvimento?  O que há de comum nestes três fenômenos sociais? Para além de se apresentarem como resultado da ação dos seres humanos que convivem em sociedade é possível reconhecer um fio condutor que une e confere sentido a estes  fenômenos? O que estas dimensões sociais nos permitem considerar em relação aos desafios societários nos quais se encontram inseridos milhões de brasileiros nestas primeiras décadas do século XXI? Será que há distinção entre os que promovem barbárie e os que acessam educação e desenvolvimento? Será que a barbárie definitivamente se sobrepôs a educação? Ou a barbárie é apenas um momento da lógica societária necessária (a alguns) ao alcance do desenvolvimento nacional (para todos)?

As respostas a estes questionamentos demandam significativos esforços reflexivos. São questões que merecem o devido aprofundamento analítico, pois colocam em jogo aspectos constitutivos do tecido social brasileiro e, por consequência a forma de ser, o modus operandi do ser brasileiro. Nesta crônica, tangenciaremos um dos aspectos que consideramos estratégico para compreender o modo de ser brasileiro e, suas dificuldades de constituir um projeto de desenvolvimento nacional inclusivo, consistente e com justiça social.

Talvez, se possa afirmar que um dos aspectos que se relaciona com a violência coercitiva estatal no Complexo do Alemão, com educação e o desenvolvimento nacional é a violência.  A violência estatal está nos fundamentos da constituição da colônia de exploração portuguesa nos mares do Atlântico Sul. A violência da exploração predatória do “pau-brasil”. A violência contra os povos indígenas no afã de sua escravização, ou mesmo catequização. A violência dos mais de 320 anos de comércio além-mar de seres humanos, tratados como carne humana negra, pela nobreza e elite europeia global, para ser consumida pelo trabalho escravo nos canaviais, nas minas gerais, na produção do café. A violência do analfabetismo quase que absoluto sobre as hordas de brasileiros advindas da Colônia, passando pelo Império e adentrando a República até meados dos anos 40 do século XX. A violência contra os levantes populares: a Balaiada, a Cabanada, Os Quebra-Quilos, Canudos, Contestado… A violência contra lideranças indígenas, negras, populares, trabalhadoras e trabalhadores em geral. A violência contra indigenistas, contra ambientalistas, contra professores e jornalistas. Ah, a violência cotidiana contra as mulheres, o feminicídio. A violência contra as orientações homoafetivas, transexuais. A violência estatal policial na favela do Jacarezinho em 2021 (28 mortes)[i]. A violência policial na Vila Cruzeiro no Complexo da Penha em 2022 (23 mortes)[ii]. A violência policial no Complexo de Alemão[iii] em 22 (18 mortes). Violência cotidiana que explode em discursos, em redes sociais, em festas de aniversário, no trânsito. A violência que se expressa em mais de 33 milhões de brasileiros lançados na miséria[iv]. A violência da insegurança alimentar. A violência está inscrita com ferro em brasa na “alma” do povo brasileiro.

Naturalizamos a violência: “sempre foi assim”. Tornou-se invisível. Faz parte do cotidiano. Invade instituições. Destrói as formas de representação política e social. Avança sobre a Educação. Ministro da Educação que se utilizava da estrutura do ministério, dos recursos para promover uma cruzada em defesa de questões ideológicas[v] em total desrespeito e descompasso com necessidades urgentes de desenvolvimento do país.  Ministro da Educação que permaneceu uma semana na pasta[vi]. Exonerado por apresentar informações duvidosas em seu Curriculum. Ministro que articulava o trânsito de pastores no ministério para negociar o orçamento do Ministério da Educação[vii]. Corte de investimentos em bolsas de pesquisas para jovens estudantes e, mesmo para pesquisadores nas mais diversas áreas[viii].

Quando governos desmontam, solapam, agridem o pouco de educação formal que a duras penas a sociedade brasileira conseguiu constituir pós anos 60 do século XX, estamos diante do embrutecimento, da barbárie, do rastro de violência deixado pela boiada, pelos zeros somados, pela crença fanática de hordas de indivíduos pelos seus líderes e seus bezerros de ouro.  Porém, quando a sociedade brasileira aceita passivamente a manifestação da violência que se abate sobre a educação de suas crianças, adolescentes e jovens já não há o que fazer. O desenvolvimento de sociedades marcadas histórica e socialmente pela violência e, que se deixam violentar naquilo que há de mais precioso para sua manutenção e desenvolvimento, as crianças, os adolescentes e, os jovens não reúnem as condições para a constituição de propostas de desenvolvimentos soberanas.

Sociedades periféricas, ou “emergentes”, são sociedades que não alcançaram a condição necessária e inadiável de tomarem a si mesmas como objeto, de compreenderem suas fraturas fundamentais, suas contradições de origem. Desconsideram a violência constitutiva presente nas suas origens, bem como vigente plenamente em seu tecido social na atualidade, permanecem como sociedades à margem das sociedades desenvolvidas. Ou dito de outra forma, sociedades cujas elites não se comprometem com a constituição da nação, bem como sociedades em que a população reproduz a violência da qual é vítima por parte de suas elites, são sociedades fadadas à condição periférica.

Sociedades periféricas produzem e reproduzem estruturas estatais violentamente coercitivas, sistemas jurídicos que legalizam a violência estatal na forma de corporações que se protegem de possíveis reações populares diante da barbárie a que são submetidas. Sociedades periféricas abandonadas pelo Estado constituem estruturas de poder paralelas, narcotraficantes, milicianos, esquadrões de toda ordem proliferam reproduzindo no tecido social, a partir de seus métodos e suas linguagens, a brutalidade da violência estatal que enfrentam.

Sociedades assim se caracterizam como sociedades de desenvolvimento dependente, subdesenvolvidas, emergentes, periféricas, de renda média, ou qualquer expressão que se altera ao longo do tempo, mas que tem em sua essência a violência e exploração das riquezas e, do trabalho de seus povos como norma. Entregam, a partir de estruturas institucionais, de direito, de poder, e de uso da força, articuladas por uma elite engajada internacionalmente, suas riquezas naturais, sua força de trabalho, a riqueza socialmente produzida. Perdem seu presente e futuro ao sobreviver  em condições do desastre educacional que é imposto às suas crianças, adolescentes e jovens. Educação é bem público necessário, fundamental e estratégico para o desenvolvimento humano, social e nacional. Sem considerar a paralisação das instituições que dão conta e andamento das tragédias da seletividade da educação e desenvolvimento, bem como poderíamos enumerar saúde e cultura, dentre outras questões, não se pode compreender a falência de nosso projeto de nação. Se você chegou até este ponto do texto és um ser humano que resiste a barbárie, a violência e ao embrutecimento e, talvez possas considerar as profundas implicâncias humanas e sociais que existem na relação entre o “Complexo do Alemão, a educação e o desenvolvimento nacional”.

Finalizamos o artigo com indicativo musical transcrevendo parte da letra da música: “Estado violência” (Titãs). “Sinto no meu corpo. A dor que angustia. A lei ao meu redor. A lei que eu não queria – Estado Violência. Estado hipocrisia. A lei que não é minha. A lei que eu não queria – Meu corpo não é meu. Meu coração é teu. Atrás de portas frias. O homem está só.  Homem em silêncio. Homem na prisão. Homem no escuro. Futuro da nação (…)”[ix]

OUÇA A COLUNA COMENTADA:

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*