Opinião | A relativização do valor da verdade

Foto: Étienne Klein

Em várias oportunidades diárias temos crescente uma relativização do valor da verdade em um movimento que as vezes é somente bizarro, em outros pode até mesmo colocar a vida das pessoas em risco. Um cientista posta a foto de uma fatia de salame dizendo que é uma foto de uma estrela. As pessoas acreditam, repostam, espalham, passam vergonha com ares de intelectual.

Há casos de pessoas espancadas até a morte em decorrência de mentiras passadas nas redes sociais. Na última semana, um comunicador foi condenado nos EUA a pagar bilhões pelas mentiras ditas. Isso bem podia virar moda por aqui também! Apesar de estarmos inundados com informação, isso não se traduz em conhecimento.

Houve uma época em que se confiava mais no que as autoridades diziam. Lembro que, da primeira vez que ouvi um jornal chamar um Presidente da República de mentiroso, tal menção me causou uma estranheza indisfarçável. Hoje, me admiraria justamente o contrário. Apenas 28% da população confia totalmente no que o ocupante do cargo diz. E a manchete diz que tal nível de confiança alcançou um pico! Que tristeza se contentar com tão pouco.

Temos um problema sério a enfrentar em nossa sociedade nos próximos anos, vença quem vencer essa eleição. É restaurar a noção de verdade e a honra em se falar a verdade. O que vemos diariamente é uma mentirada vergonhosa, e, inclusive, mentirosos falando que não se pode punir mentiras. Se tenta suavizar as mentiras com expressões como “fake news”, “pós verdade”, “guerra de narrativas”. Virou tema até para enredo de novela.

Bem, se não é pela honra em se falar a verdade, se não é pelo “fio do bigode”, ao menos, em se tratando de eleições, temos a Lei Eleitoral (Lei 4.737) para colocar ordem na casa. Nela consta e cito o Artigo 323: 

Artigo 323 da Lei nº 4.737

“Divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado:

Pena – detenção de dois meses a um ano, ou pagamento de 120 a 150 dias-multa.

  • 1º Nas mesmas penas incorre quem produz, oferece ou vende vídeo com conteúdo inverídico acerca de partidos ou candidatos.
  • 2º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) até metade se o crime:

I – é cometido por meio da imprensa, rádio ou televisão, ou por meio da internet ou de rede social, ou é transmitido em tempo real;

II – envolve menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia.”

Essa lei, cujo conteúdo parece colocar um ponto final no discursinho de que não se pode punir mentiras eleitorais, remete a 1965 e a última alteração nesse artigo mencionado se deu ano passado.

Para além disso, o que me motivou inicialmente colocar as mentiras em pauta nesse final de semana, é que nesse último dia 20, quinta feira, o TSE aprovou mudanças operacionais nos procedimentos para retirar notícias falsas, por meio do conteúdo identificado como tal, independente do link no qual está disponível. Tal medida tem em vista tentar diminuir essa enxurrada de mentiras que nos são servidas diariamente pela internet.

Candidatos em disputa, candidatos eleitos, líderes religiosos, patrões, mentindo com as histórias mais absurdas para tentar colocar medo na população e controlar o voto de quem os escuta por alguma relação de poder. Dá muita vergonha alheia o modo como mentirosos não têm a menor cerimônia para dizer X pela manhã e, quando confrontados com os fatos a tarde, negar X (mesmo com gravações) ou mesmo negar que disseram ou fizeram X. Sem honra. Sem moral. E, pelo artigo acima citado, podendo até mesmo virem a ser considerados criminosos. O TSE recebendo mais de 500 alertas de mentiras por dia propagadas contra candidatos, a recorrência e a naturalidade com que tem se relativizado o valor de se falar a verdade impressiona.

Perder de vista a verdade é colocar em risco a própria organização em sociedade. Se não podemos mais confiar no que as demais pessoas dizem, como se dão as relações sociais? O comércio? A educação? Como escolher um candidato? Um produto? Um serviço? Como buscar o desenvolvimento regional sem a possibilidade de relações de confiança?

Poderia aqui desenvolver argumentos filosóficos dos mais variados para discutir o que é a verdade, quais os critérios para identificarmos a verdade, ou, ainda, argumentos pragmáticos da teoria da linguagem de uma espécie de “combinado” em dada sociedade, ou, ainda, dos limites da relação ou não de verdade e mentira com relação à moral. Mas tudo isso não é oportuno para hoje. O leitor sabe do que estou falando quando me refiro aqui às mentiras que estamos vendo todos os dias e com uma intensidade assombrosa direcionados a candidatos e com vistas a influenciar o voto das pessoas.

A questão que fica é, independente de quem ganhar o segundo turno dessas eleições, a vida vai seguir, as pessoas precisam ser responsabilizadas, se não a tempo de se evitar a efetividade do mal projetado na elaboração das mentiras, ao menos depois das eleições. E, em algum momento, será necessário que pensemos em como restaurar a verdade, seja por via ética (motivação interna) ou seja via dispositivos externos mesmo (leis, códigos de ética profissional, códigos religiosos…), com um desafio a parte para os cientistas sociais compreenderem como isso chegou nesse nível.

Isso me lembra uma passagem do velho Kant que nos diz que o ser humano, além de ter que lidar com a natureza que nem sempre lhe é cordial, ainda tem que lidar com uma série de problemas que o ser humano mesmo cria para si. Esse modo de vida no qual não se pode mais confiar no que é dito me parece um claro exemplo dessa nossa irracionalidade que se percebe de tempos em tempos no modo de nos organizarmos em sociedade, criando problemas extras, desnecessários, na vida, causando prejuízos tanto individuais quanto coletivos.

Que tempos em que se precisa explicar até mesmo que a terra é redonda?

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*