Duzentos anos, oligarquias econômicas e políticas controlando e cerceando a criatividade de pensamento e ação de corpos negros escravizados (“foram libertos!?” somente em 1888), de povos nativos (índios) massacrados, de cafuzos, de mamelucos, de pardos, de imigrantes, de “brasileiros”. De um lado, acordos, conchavos, patrimonialismo, fisiologismo. Soluções de continuidade de toda ordem para manter sob controle os rumos da nação. De golpes militares, até marchas com Deus pela proteção da família e da propriedade privada, movimentadas por representantes reacionários das “elites” econômicas e da classe média, também conhecida como “piccola borghesia”. De outro lado, conflitos, insurgências, guerrilhas, movimentos sociais de toda ordem em cada região deste país.
Liberalismo político? Liberalismo econômico? Um luxo em terras de oligarquias retrógradas remanescentes dos donatários das capitânias hereditárias, dos senhores de engenho, dos traficantes de escravos, dos barões do café. Educação para a população? Luxo desnecessário. Assinar o próprio nome já seria o suficiente. Já no século XX providencia-se uma educação para formar mão de obra barata ao nascente “mercado de trabalho”. Ensina-se o básico. Analfabetismo funcional não é analfabetismo total. O projeto educacional brasileiro historicamente pautou-se por não se constituir como um projeto educacional suficiente na promoção da autonomia de pensamento e ação dos estudantes.
Duzentos anos de violências, de cerceamentos contra as mulheres, contra os seres humanos de orientação homo afetiva, contra brasileiras e brasileiros, que ousassem, ou ainda ousem pensar, se expressar, se posicionar de forma diferente, autônoma, crítica e criativa. Violência contra movimentos sociais, contra quilombolas, contra associações de moradores de favelas, contra sem tetos, contra sem terra, contra os sem “direitos” ao exercício da cidadania. Segmentos da sociedade brasileira que e organizaram ao longo da história e, que continuam a se organizar na luta pelo direito a uma vida digna, descente. Violência contra professores, intelectuais, artistas. Queimaram-se livros, bibliotecas, documentos de cultura.
Duzentos anos de violências que impedem a constituição de um contrato social. O contrato social define direitos, deveres entre as partes contratantes. Define limites a serem observados pelas partes envolvidas. Define responsabilidades. Determina a primazia do espaço público, dos bens públicos compartilhados por todos. A afirmação do contrato pressupõe o reconhecimento do princípio da “isonomia” dos indivíduos perante a lei. Pressupõe a disposição dos contratantes estabelecerem os pressupostos contratuais de forma livre, ausente de coerções de terceiros, ou mesmo de determinados grupos. A existência de um contrato social pressupõe vozes ativas, exige participação, voz e vez dos envolvidos na redação e execução do contrato.
Nos últimos anos desta segunda década do século XXI, assistimos a todo tipo de formas de manifestação de violência política, motivada por interesses econômicos específicos em âmbito nacional e internacional. O velho, arcaico, mas eficiente discurso moral da “corrupção” da política foi usado, decantado em prosa e em verso sobre a “opinião pública”. A política foi linchada em praça pública. A antipolítica foi elevada a condição de salvação nacional. A mentira assumiu o posto da verdade. Cotidianamente e instantaneamente disseminada. Astrólogos, ideólogos passaram a disseminar o complô para dominar o país, roubar-lhes os símbolos nacionais, a bandeira, o hino. Como pólvora incendiada, alastra-se instantaneamente um processo de fascistização de parte da sociedade brasileira. Também a anticiência se alastrou. O suposto banheiro unissex entrou na lista dos locais mais perversos e deletérios que a humanidade possa ter conhecido. O STF foi confundido com o FGTS. Voto impresso. A volta dos militares. E, sobretudo, o desmonte do parco e minguado Estado de bem-estar social construído desde a Constituição Federal de 1988, que foi por seu turno resultante de demandas reprimidas da sociedade brasileira por séculos.
Passadas as eleições para o legislativo e para o executivo em todo território nacional coalizões de poder agem para que ‘tudo continue como dantes no quartel-general em Abrantes’. Novo governo, novas negociações, novos acordos. Talvez seja possível afirmar pelo histórico de vida pública do presidente eleito que ao menos não teremos que conviver com asneiras, fake news, corrupção familiar e parlamentar (orçamento secreto), ofensas de toda ordem desferidas pelo mandatário nacional cotidianamente. Porém, seus asseclas mantêm-se firmes com suas demandas que deveriam ter se realizado nas primeiras 72 horas. Tudo indica que alteraram o prazo para 720 horas, ou mesmo tenham estendido o prazo para 7.200 horas, ao final das quais eventos e sinais específicos buscarão indicar o caminho. Tudo certo. Aqui vale o gato que responde a Alice quando lhe pergunta qual o melhor caminho a seguir: “para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve”.
Mas, do outro lado do contrato há quem tenha caminhado mais de 20 quilômetros para votar nas últimas eleições, houve enfrentamento de todas as ordens para garantir posicionamento, desfacelamento de laços familiares, de trabalho, de amizade, conflitos diretos, urbanos, rurais, imagens, sons, tons de luta que desafiaram todo tipo de instituição para garantir voz na construção de contrato que garanta o mínimo de condições para a vontade popular. A fome exige um contrato social real. A população expôs que tem toda condição de dizer o que almeja. Meios de comunicação, a ciência, a elite econômica, a classe média, as instituições que se apresentaram racistas, classistas foram obrigadas a atentar para a força da população que está exausta, faminta, pobre, miserável, mas viva e atuante.
O fato determinante é que entraremos em 2023, completando 201 anos (contando apenas após a independência) sem um contrato social suficiente que expresse o reconhecimento pelos mais diversos segmentos sociais, o espaço público como locus determinante para a constituição de um país decente para sua gente, para sua população. A luta encarniçada pelo controle das decisões do novo governo para manutenção do regime de acumulação do capital por parte de setores privilegiados nacionais e internacionais está em curso. O “mercado” (esta entidade que metafísica, que possui todas as verdades sobre como operar a riqueza nacionalmente produzida) está apreensivo, até mais do que os 30 milhões de brasileiros que passam fome cotidianamente frutos das políticas fascistas de desmonte do mísero estado de bem-estar social brasileiro que foram colocadas em curso nos últimos anos e, com apoio dos homens e dos intelectuais de bem.
Então, salvaguardadas algumas migalhas lançadas às classes que sustentam esta pirâmide social de insensatez, de exploração, de gritantes e vexaminosas condições humanas e sociais, salvaguardados os interesses dos grandes grupos econômicos, de especuladores, de investigadores, do mercado para quem a sociedade brasileira expôs esforços para ser contratante – as palavras aqui são destinadas a condenar o modo proposital de condução alienante da sociedade – para considerar canais de comunicação e possibilidades existentes na atualidade para que esta população possa avançar atuante na construção do contrato social e de uma sociedade pautada na justiça social. Do contrário, caso se ouça apenas o mercado, instituições e interesses internacionais e de grupos classistas brasileiros, esta coalizão de poder estimulará continuidade à insensata marcha ao lugar nenhum, desprovida de contrato social, desprovida da adequada compreensão de si mesma.
Basta esperar o próximo capitão, o próximo “caçador de marajá”, ou até mesmo o próximo fascistoide de plantão surgir e, que será financiado pelo capital para salvaguardar seus interesses. Isto é patético, e ao mesmo tempo recorrente na sociedade de castas brasileira. Tarefa inadiável. É preciso reposicionar a política local, regional e nacional no centro do debate em torno da constituição do contrato social. Talvez no ano de 2122, os brasileiros que por aqui estiverem possam celebrar a superação de mais de 500 anos de barbárie, de violências físicas, discursivas, simbólicas, políticas, econômicas possam ter terra, comida, educação, saúde, desenvolvimento humano e social suficientes.
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