Nessa semana, pode-se partir do pressuposto de que o Brasil nos parece mais transparente do que parecia há alguns meses, onde se está colocando à luz as tentativas recentes de usar para fins privados o bem público, temporariamente, ou, ainda, de tomar o bem público para si de modo cabal. Me refiro aqui tanto às alegações de que um atual Ministro de Estado usou recursos públicos para uma agenda pessoal, quanto às alegações de que o ex-presidente Bolsonaro tomou para si e levou para casa joias que seriam presente para o país (além, é claro, das tentativas de tomar também para si as joias femininas que estão com a Receita Federal).
Neste último caso, como se sabe, bastava que o intermediário (que foi até a Receita Federal retirar o pacote uns dias antes do fim do mandato presidencial) preenchesse a papelada dizendo que a destinação das joias seria a incorporação ao patrimônio da União, para que tivesse voltado com a missão cumprida, sem nem a necessidade de pagamento de multas ou taxas. Contudo, bem sabia o intermediário, não seria essa a destinação das joias e ele não quis se comprometer com isso.
Em 2016, o Tribunal de Contas da União esclareceu de modo a não deixar margem para dúvidas as regras para a destinação dos presentes recebidos de autoridades estrangeiras, o que fez inclusive com que esse novo entendimento retroagisse até os presentes recebidos de 2002 pra cá, movimentando devoluções ao Patrimônio da União de objetos que, até 2016, se entendia que poderiam ficar com quem os recebeu. De qualquer modo, mesmo nessas buscas, nenhum objeto ou mesmo a soma deles chegou aos pés do valor das joias em disputa.
Registre-se, de passagem, que o ex-Ministro de Minas e Energia, ao agradecer por carta os generosos presentes recebidos, afirma ao governo estrangeiro que tais presentes foram incorporados ao acervo brasileiro tal qual dita a legislação nacional, bem como, o código de conduta da administração pública. No entanto, um pacote estava na Receita e outro estava com o ex-Presidente que o levou pra casa ao fim do mandato como se fosse parte de seus bens particulares.
Pegar o avião da Força Aérea Brasileira e receber diárias pagas pela União para ir a um leilão de cavalos, por interesse meramente pessoal, querer tomar para si joias dadas ao Brasil, usar o cargo para espionar a declaração de imposto de renda de desafetos, contratar funcionários fantasmas, fazer “rachadinha” em seu gabinete, fraudar licitação na prefeitura, ou, ainda, sonegar imposto de renda em casa, são exemplos do que seria, em tese, ilegalidades, se, após o devido processo legal, se confirmassem tais fatos e respectivas autorias. O que esses exemplos possuem em comum? O mau tem a mesma raiz: o patrimonialismo.
O patrimonialismo é um modo de governar no qual o governante usa o poder e recursos públicos para seus interesses privados, para lucrar pessoalmente, para blindar a si, aos seus familiares e amigos de investigações e punições, para perseguir opositores, onde o interesse público não é o foco de preocupações e ações. Com isso, percebe-se uma inegável familiaridade dessa noção com o modo como vemos, em diferentes níveis de governo, ações, ora generalizadas, ora pontuais, aqui e acolá.
Uma coisa é o bem público, que é de todos. Outra é o bem privado. O Brasil, do modo como nos parece, corre constante risco de confundir o público com o privado, ou, ainda, de entender o bem público como se fosse o bem de ninguém e cuidado por ninguém, no qual cada um que puder, toma mais para si, incorpora ao seu acervo privado o que puder pegar do acervo público.
Com isso vemos que parte de nossas crises políticas são, antes, crises éticas. Passados mais de dois mil anos em discussões sobre como se deve agir, séculos nos quais os pensadores se admiraram com a ordem das estrelas e pensaram se ordem semelhante não seria possível entre os seres humanos para uma melhor convivência, ainda não chegamos a superar as mesmas dificuldades iniciais. Não sabemos com clareza o que é justo fazer em cada situação do dia a dia, nem o que se deve fazer diante da complexidade da existência que desafia todo e qualquer código de ética profissional. Mas não é por não termos ainda todas as respostas que podemos nos dar o luxo de desviar o olhar, ou, ainda, de evitarmos as perguntas, por mais incômodas que elas possam vir a ser.
Indicação musical: Tenório Jr. – Nebulosa
A música se chama “Nebulosa”, de Tenório Júnior, que sumiu em 1976, após um show em Buenos Aires, no qual tocava piano para Vinicius de Moraes e Toquinho. Muitos anos mais tarde se soube que ele foi confundido na rua por militares, sequestrado, torturado por agentes brasileiros e argentinos, e morto.
Leandro Rocha – Doutor em Filosofia pela UFSC e professor na Universidade do Estado de Minas Gerais.
Bom artigo. Qdo, em 1831, D Pedro I, voltou a Portugal, minha pergunta é: levou a coroa com mais de 600 diamantes?