O termo “democracia” está na moda. Indivíduos pertencentes aos mais distintos segmentos sociais se manifestam em sua defesa, entre eles: empresários, militares, pastores, bispos, conservadores, liberais, reacionários, de direita, de esquerda, de extrema direita. Parte significativa destes personagens disseminam mentiras políticas ou, sobre a política (fake news). Em nome da democracia se promovem guerras, armam-se povos numa guerra sem fim, ou por procuração contra outros povos. Em defesa da democracia se advoga pela liberdade de mercado, pela manutenção escorchante de taxas de juros pelo Banco Central “Independente” das decisões políticas, mas refém das decisões “técnicas, eficazes” da voracidade da economia de mercado sobre a riqueza socialmente produzida. Entre 2016 e 2022, em nome da defesa da democracia, direitos trabalhistas e previdenciários foram reformados, retirados dos brasileiros em nome do ajuste fiscal, da eficiência da máquina pública, da acumulação de superávit primário por parte do Estado como garantia aos investidores internacionais, ao capital financeiro, ao capital especulativo, “ansiosos” pela generosa remuneração assegurada pelo tesouro nacional na forma de juros.
Em entrevista realizada em 17 de novembro de 2014 na Grécia, o filósofo e Jurista Giorgio Agamben (1942), sugere que ao considerarmos a questão da democracia constata-se que se apresenta como conceito ambíguo e que, sob determinadas condições, não sabemos muito bem do que estamos falando quando falamos de democracia. Tal condição se aprofunda quando nos deparamos com os mais distintos atores e interesses comprometidos com sua defesa, como expresso no parágrafo acima.
Inicialmente é preciso elucidar que democracia não é sinônimo de liberalismo, de capitalismo, de socialismo, ou mesmo de comunismo. Nos momentos da trajetória ocidental em que a democracia se manifestou como forma de governo foi alvo do “ódio” das aristocracias e das oligarquias. Sua existência esteve ameaçada pelos interesses de grupos políticos, econômicos e militares, que a identificaram e identificam como afronta aos seus “direitos inatos”, “de sangue”, “de nobreza”.
A democracia como forma de governo alicerçada na participação dos cidadãos nasce na Grécia Antiga por volta do século V A.C., perdurando até fins do século IV A.C. Conformada pela participação periódica dos cidadãos em torno das questões públicas, a democracia ateniense pode, sob determinadas circunstâncias, ser considerada como uma democracia participativa direta. Sob perspectivas hodiernas a experiência grega de democracia pode ser considerada excludente, pois dela participavam apenas homens detentores de propriedade, de servos e escravos que lhes asseguravam a base material para a dedicação às questões públicas, ao debate público e à tomada de decisões estratégicas que garantissem aos cidadãos atenienses o bem viver, a qualificação pública de suas vidas.
Servos, escravos, mulheres não participavam da democracia ateniense. O fato determinante que nos interessa analisar aqui é que desde seus primórdios a democracia será alvo de críticas por parte de segmentos oligárquicos e aristocráticos da sociedade ateniense. Entre as várias críticas dirigidas à democracia, encontramos a impossibilidade de um governo justo e eficaz por parte da multidão de cidadãos. Nesta direção, Platão, filho da aristocracia ateniense, acusa a democracia (os cidadãos) de terem condenado à morte o mais sábio dos homens (Sócrates). Sua obra “A República” pode ser considerada um panegírico ao governo da aristocracia, mas especificamente ao rei filósofo (philocracia), o único cidadão com capacidade de discernimento diante das questões estratégicas da polis. Aristóteles, por seu turno, considerara a democracia entre as piores formas de governo. Por volta do ano 401 A.C. a democracia ateniense é derrubada e a cidade-Estado grega passa a ser governada por uma oligarquia.
Por longos séculos a democracia foi esquecida. Seu ressurgimento se dá na modernidade, que se caracteriza pelo aumento demográfico, pelo ressurgimento das cidades, do comércio entre regiões e povos, pelo mercantilismo, pela invasão das terras do novo mundo e pilhagem de suas riquezas, pelo estabelecimento do comércio de seres humanos retirados da África para o trabalho escravo nas colônias europeias, pelas guerras e domínio dos povos asiáticos, sobretudo indianos e chineses. Todos estes fenômenos descritos, entre outros que poderiam ser apresentados, geraram um intenso processo de acumulação de capital nos principais estados do período: Inglaterra, Holanda, França, determinante para a eclosão da revolução industrial no primeiro destes estados modernos.
A revolução industrial vai alterar profundamente a cosmovisão estabelecida ao longo dos séculos que a precederam. Na centralidade da vida de multidões de homens, mulheres se apresentará o trabalho assalariado, a divisão social do tempo e do trabalho. A economia assume a centralidade das relações humanas na forma das relações de produção, distribuição e consumo de produtos. A manutenção da vida dos indivíduos, dos membros da família está vinculada ao acesso ao emprego e, por decorrência, ao acesso ao salário compondo a renda individual e familiar. A exploração e expropriação da natureza em seus recursos naturais foram acompanhadas pela exploração e expropriação do trabalho humano. Nestas condições não tardou para que surgissem os primeiros conflitos sociais entre capital e trabalho, entre capitalistas e trabalhadores.
Neste contexto, a organização e a luta dos trabalhadores em seus diversos segmentos exigindo do capital o reconhecimento de direitos trabalhistas, de direitos previdenciários, de direito à educação, à saúde, à moradia, ao saneamento básico, a condições dignas de vida foi determinante para conformação da democracia representativa. Ou dito de outra forma, o Estado como agência mediadora do conflito entre capital e trabalho e, portanto, como instância do locus por excelência do político passa a ser disputado entre o capital e o trabalho, entre capitalistas e trabalhadores. A administração adequada do conflito exigiu a conformação de instituições (executivo, legislativo, judiciário, partidos políticos, entre outras), que regulassem a intensidade do conflito pela concessão de direitos à classe trabalhadora. É deste contexto que se poder falar de Estado de direito, ou de Estado democrático de direito, de direitos de primeira, de segunda e, de terceira geração e, na atualidade, de direitos difusos.
Porém, apesar das diferenças temporais e, sobretudo, civilizatórias, parece que é possível afirmar um aspecto em comum entre a experiência da democracia participativa ateniense e a democracia representativa moderna. Ambas são ferozmente agredidas por interesses de grupos sociais intolerantes a participação cidadã no caso de Atenas, ou de participação representativa popular no caso das sociedades modernas e contemporâneas. É como se houvesse “ódio a democracia” (Jacques Rancière).
Ou ainda dito de outro modo, sobretudo nos séculos XIX, XX e nestas primeiras décadas do século XXI, parece ser possível considerar que todas as vezes que a classe trabalhadora, ou na atualidade as classes populares, ou multidão (Toni Negri) avançam na conquista de direitos sociais, ou individuais, as oligarquias desencadeiam formas de violência (simbólica, institucional, física) como estratégia de fazer frente ao avanço das conquistas de direitos individuais e sociais por parte de segmentos da população.
Sob tais pressupostos, constata-se que é no seio das democracias representativas que se constituíram os fenômenos do fascismo (italiano) e do nazismo (alemão). Estes dois fenômenos de violência simbólica, institucional e física foram financiados pelo grande capital frente à organização e alcance de direitos dos trabalhadores italianos e alemães nas primeiras décadas do século XX. Fascismo e Nazismo amparados na figura do líder (Duce e o Fuhrer) conservador, reacionário, que funde o Estado e a sociedade em sua própria condição de liderança absoluta, totalitária, promoveram no contexto das democracias italianas e alemãs do período a derrocada das instituições, a divisão das respectivas sociedades entre os que eram a favor do “grande líder” e os que eram contra, classificados estes como inimigos da nação, do povo, entre eles, os socialistas, os anarquistas, os comunistas, os seres humanos de orientação homo afetiva, os judeus, os ciganos, entre outros assim denominados pelo totalitarismo em curso.
A mentira, a depreciação da política, dos políticos, das instituições, a identificação direta com o líder que diuturnamente vocifera preconceitos, racismos, xingamentos, xenofobia, entre tantas outras barbáries, é imediata com parte da população insuflada por tais discursos. Todos estes movimentos pavorosos no contexto de democracias representativas se constituíram e se constituem como estratégia de afronta ao trabalho, aos trabalhadores, aos movimentos sociais, à organização social, à disposição da sociedade e dos cidadãos de exercerem a democracia envolvendo-se com o debate público qualitativo.
Novamente, em plenas primeiras décadas do século XXI, os tempos que estamos vivendo se apresentam sombrios (Hannah Arendt). Aquilo que se chama de política no transcurso das sociedades contemporâneas não corresponde suficientemente a concepção de política que herdamos dos gregos antigos, ou mesmo de Maquiável, Hobbes, Locke, Rousseau, Hegel, Nietzsche, entre outros pensadores. Assim, a política apresenta-se desvinculada do compromisso com o debate público, de discursos públicos (políticos) comprometidos com a expressão da verdade e, de interesse da coletividade. Aquilo que chamamos na atualidade de política apresenta-se como espetáculo grotesco, falacioso, violento, desrespeitoso por parte de detentores de cargos públicos a serviço de interesses minoritários, de grupos, corporações econômicas, no contexto de um sistema político pateticamente ainda chamado de democracia representativa.
Os partidos políticos, outrora importantes instituições da democracia representativa, transformaram-se em sigla de aluguel. Seus projetos políticos e ideológicos evaporaram. Diante das siglas partidárias o indivíduo eleitor não tem condições de saber se o partido possui um projeto de sociedade, um programa de governo, ou se se trata somente de mais uma agremiação de oportunistas. De uma instituição (partido) que faz qualquer “negócio” para eleger o maior número de candidatos da legenda com o deliberado objetivo de manutenção de interesses privados que os elegeram via controle do congresso e do senado. Tais “representantes” multiplicam discursos falaciosos, distorcem a lógica do discurso, desinformam, encenam a defesa dos direitos sociais e individuais, mas votam projetos draconianos em relação aos interesses da coletividade.
A perda da política como esfera do bem comum, a falácia, a mentira, a violência dos discursos que corroem a noção e a importância da política, paradoxalmente se apresentam como defensores da democracia representativa. A história se repete como farsa (Marx). O inimigo da política, da democracia, chama-se capital, seja ele financeiro, seja ele especulativo. A manutenção do regime de acumulação do capital não suporta o avanço dos direitos dos indivíduos, das comunidades, de povos, sobretudo se subalternos na ordem geopolítica hegemônica.
A lógica operacional do capital capturou os indivíduos na lógica do endividamento, do crédito e do débito. Trabalha-se diuturnamente para honrar a dívida do cartão de crédito ao final do mês. Emporcalhou a política acusando-a de “naturalmente” corrupta. Mente publicamente ao esconder o fato de que a corrupção é fenômeno privado que se impõe sobre o interesse público.
O capital tem humor. Exige liberdade de circulação e acumulação. Impõe ao Estado e a sociedade obediência e, compromisso com a segurança jurídica sobre os contratos unilaterais que impõe sobre sociedades e povos. Determina as regras do ajuste fiscal, que lhe garanta que a riqueza socialmente produzida possa cinicamente ser expropriada reduzindo os serviços públicos, condenando parcelas significativas das populações a miséria, a pobreza, a dor e ao sofrimento. O capital promove conflitos, guerras, mas, sobretudo uma guerra civil no interior das sociedades locais, nacionais e mundial como estratégia de afirmação de seus interesses geopolíticos.
É inerente à democracia como forma de governo a participação de amplos setores sociais em torno dos interesses públicos, dos bens públicos. As práticas de orientação neofacista financiadas pelo capital e executadas pelos seus asseclas são a expressão tácita do ódio a democracia, a participação popular, ao argumento inconteste de que a riqueza socialmente produzida necessita, sob os pressupostos da justiça social, ser socialmente distribuída. Não se trata de rechaçar a democracia como proposta política. Pelo contrário, se trata de considerar que, enquanto tomada como meio para os fins de acumulação do grande capital, perde sua finalidade, a saber, permitir a participação popular. É nesse contexto que se compreende que a democracia, enquanto mero instrumento para o lucro, não pode nem consegue ser participativa, tampouco representativa. A descrença nos pressupostos democráticos, nessa direção, talvez se apresente antes como sintoma de uma sensação de não pertencimento à pólis, do que uma natural tendência ao totalitarismo. Associada, por outro lado, aos discursos de ódio fomentados por uma “nova” proposta de política, ou uma anti-política, encontra em um sem-número de fatores psicológicos e sociais, terreno fértil para a evocação da suspensão da ordem democrática em detrimento do império da técnica. A democracia como forma de governo popular demanda urgente por uma nova ética na economia; devolver a economia ao uso comum dos povos e, por necessária decorrência do referido argumento por uma nova ética na política incidindo no cuidado com o mundo compartilhado entre seres humanos e a diversidade de formas de vida, que promovem a vida em sua totalidade. Todas as práticas que não condizem com tais demandas são a expressão da barbárie neonazifascista em curso.
Sandro Luiz Bazzanella, professor de Filosofia e Sandra Eloisa Pisa Bazzanella, graduanda em Filosofia.
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