Nos últimos um ano e meio, em função do ofício de professor e pelo meu interesse analítico pelos relações internacionais e pela geopolítica, não raro sou questionado sobre os motivos que levaram ao conflito atual em território ucraniano, suas possíveis consequências e, a mais difícil das questões, qual seria o “lado” a ser apoiado pelo Brasil diplomaticamente. O fato é que é uma questão complexa, pois se por um lado houve uma clara agressão a um território soberano com base no direito internacional, também é certo que a OTAN esticou a corda ao aproximar-se das fronteiras da Federação Russa, essa que quando afrontada, historicamente exerceu reações bélicas que culminaram em mudanças consideráveis na disposição das forças internacionais.
Além disso, não há um paralelo muito simétrico entre a Rússia e a OTAN. Evidentemente os russos não são querubins inimputáveis, nem querem guiar o mundo para uma cruzada em busca de total equidade no cenário político internacional. Apesar disso, com base em uma perspectiva contra-hegemônica, a Rússia representa expectativas de diversos países, como é o caso da Síria e do Irã. A OTAN por sua vez, que desde sua fundação surgiu com o escopo de ser uma “aliança defensiva”, desde muito se configurou exclusivamente como um instrumento de manutenção da hegemonia estadunidense.
Se fizermos um compilado de empreitadas recentes da OTAN, o histórico não é, digamos, recomendável. Foi através da OTAN que os Estados Unidos desmantelou a Iugoslávia enquanto alardeava sobre atrocidades cometidas na antiga república. No Iraque, em meio aos argumentos de “intervenção humanista” e de supostas (que nunca foram encontradas) “armas de destruição em massa”, se deu uma aniquilação de patrimônio público e anos de intervenção com uma saída desastrosa já na gestão de Joe Biden. Na líbia, em seguida, assassinaram o líder que pleiteava a instituição de uma moeda única africana não vinculada ao dólar.
Analisando os fatos, a OTAN, criada para representar uma força militar dirigida contra o Bloco Comunista, após o fracasso do bloco soviético, se transformou em Exército mundial. Essa interpretação não é descabida, uma vez que a mesma não opera somente por meio de seus membros oficiais, mas também de não-membros. Tal condição (talvez pretensão) de uma organização modelo de um Exército Mundial foi o que permitiu a OTAN essa espécie de autoridade moral de jurisprudência global, promovendo intervenções em todas as regiões do planeta. As ações da OTAN após a queda da URSS se transfiguram em uma autoridade internacional que outorgou o mandato de policiar o mundo.
Pelo visto, a Paz Perpétua de Kant e o “fim da história” de Fukuyama precisam ser implementados pelo dólar ou através das armas. E é com base em uma suposta autoridade moral universal de quem se arvora na defesa da humanidade o que legitima a OTAN para se envolver e não responder por atrocidades. Os inimigos estão sempre além da possibilidade de diálogo, sob entendimento inviável, sem pre representam o tipo ideal do mal absoluto, do “novo Hitler”, os quais só podem ser suprimidos definitivamente, com seus povos esmagados e sua estrutura pulverizada, com sobreviventes que recorrem à prostituição como foi reportado no Iraque, a revirar lixo e a beber água de fontes não filtradas.
O mais grave é que esses eventos se deram sob a égide do Direito Internacional, do regramento sob o qual devem seguir as nações, tendo o Tribunal de Haia o carimbo da chancela internacional para eliminar os inimigos da manutenção da condição estadunidense à luz das regras. É de se pensar, qual inimigo do Ocidente já foi condenado ou acusado por crimes de guerra? E qual presidente ou autoridade militar de membros da OTAN já foi condenado em tribunais internacionais?
Desta vez, o Ocidente escolheu a Rússia como o mal absoluto, o inimigo a ser esmagado em função de seu déspota. Ainda que o tom da afirmação seja irônico e contenha uma acidez proposital, é justamente essa a narrativa encabeçada pela comunicação oficial das potências ocidentais e das edições jornalísticas de seus principais veículos. Neste cenário, o apoio militar da OTAN ao regime do presidente por procuração, Volodymyr Zelensky e a retirada da Rússia do sistema Swift, colocaram Putin a nova aproximação com a China e a acordos comerciais bilaterais com parceiros em total desconexão com o dólar. Logo, mas do que um conflito militar, estamos diante de uma ameaça ao modelo hegemônico dos EUA, os quais dão as cartas no Ocidente.
Com base nestes argumentos e por causa da complexidade da situação, creio que a melhor resposta ao questionamento mencionado no início desse artigo deve ser o de que os países não envolvidos até o momento, como é o caso do Brasil, caso forem tomar partido diplomático de um dos lados, deve refletir sobre manter a ordem internacional tal como se encontra, ou partir para uma perspectiva de eventual ruptura, visando uma perspectiva multipolar.
Seja o primeiro a comentar