Opinião | As chuvas e os “bugreiros”

Foto: reprodução

O povo originário Laklãnõ Xokleng ocupa o Sul do Brasil há mais de 6 mil anos. Desde 1914, esse povo sobrevive e resiste na Terra Indígena Ibirama, Santa Catarina, na região do Vale do Itajaí. Quando a região foi colonizada por imigrantes alemães e italianos a partir da segunda metade do século XIX, os Laklãnõ Xokleng foram caçados e mortos. Suas mortes foram pagas a bugreiros, matadores de aluguel contratados pelos colonos com aval do Governo. Eram conhecidos como bugreiros.  O pagamento era feito com base no número de orelhas de indígenas que o bugreiro apresentava aos seus contratantes.

Recentemente, a Terra Indígena fez parte do julgamento do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal. O julgamento decidiu sobre uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina. No local também vivem povos Guarani e Kaingang, além de remanescentes da Guerra do Contestado (1912 – 1916). Neste ano, o Governo do Estado foi vencido e a tese do Marco Temporal enterrada por 9 votos a 2 no STF. O plenário decidiu que a data da promulgação da Constituição Federal não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra por essas comunidades. No entanto, no mesmo mês de setembro de 2023, por 43 votos a 21, o Projeto de Lei PL 2.903/2023 foi aprovado no Senado, este que na prática possui o mesmo fundamento que o famigerado Marco Temporal.

O Vale do Itajaí em Santa Catarina historicamente sofre catástrofes socioambientais produzidas pelas características geográficas, pela ocupação desordenada de áreas vulneráveis e por empreendimentos que desrespeitam leis ambientais. As cidades da região foram construídas em torno da Bacia do Rio Itajaí Açu. O rio possui um histórico de cheias. A maior, em 1984, alcançou 15,46 metros acima do leito normal em Blumenau/SC. Desde então, a região já passou por inúmeros outros fenômenos socioambientais.

Este ano, o fenômeno se repete desde 04 de outubro. Chuvas constantes fizeram com que o Rio Itajaí Açu ultrapassasse 9 metros na noite de sábado (07 de outubro). Se as previsões da Defesa Civil estadual acertarem, deve chegar entre 12 ou 13 metros. Como medidas de segurança, as autoridades da região suspenderam as atividades escolares, ativaram os abrigos e suspenderam a tradicional Oktoberfest. A festa celebra a cultura dos colonizadores da cidade e foi criada no ano de 1984 justamente para celebrar a recuperação da cidade da enchente daquele ano. Também conhecida como a maior festa da cerveja no Brasil, a Oktoberfest também é propulsora de um discurso eurocêntrico que segue reforçando uma narrativa unilateral que apaga outras vozes presentes no Vale do Itajaí e que convenientemente adotou a alcunha de Vale Europeu.

O Vale do Itajaí possui um sistema de contenção de cheias que se tornou obsoleto e só é lembrado em momentos de perigo. São três as barragens: das cidades de Taió, Ituporanga e José Boiteux, esta última nas franjas da Terra Indígena Laklãnõ Xokleng. Colocada em operação no ano de 1992, mesmo que ainda inacabada, é a maior barragem de contenção de cheias do Estado. Desde a sua construção, cada vez que a barragem é fechada, as águas invadem as casas a jusante e as aldeias indígenas. Desde 2014, a barragem está sem operação e a deterioração e abandono são evidentes quando se chega ao local. No dia 04 de outubro, a imprensa estadual noticiou que a Defesa Civil de Santa Catarina informou que estava descartada a possibilidade de operar a barragem de José Boiteux, e que a equipe técnica concluiu não ser seguro fechar as comportas.

No meio deste festival de incompetência dos governantes regionais, ao invés de buscar resolver o problema causado pelas cheias, preferiram achar culpados, ou melhor, construir, criar, fabricar um. Ascendeu a velhos estigmas, inflamando preconceitos entre indígenas e a população envolvente regional. Tal como os Bugreiros de 170 anos antes, o “governo dos brancos” autorizou as forças policiais na Terra Indígena, buscando criar uma velha estratégia de guerra. A dicotomia, do certo e do errado. Nesta “cruzada”, buscou se eximir de culpas, levando a crer que apenas o controle da barragem de contenção de cheias de José Boiteux encerra os problemas das cheias na região. A “escolha” recaiu sobre a população de Laklãnõ Xokleng, desviando o foco, e o estigma de que os índios invadiram a barragem caiu como uma luva, resguardando a popularidade do governador e políticos regionais. O governo do estado não atendeu o protocolo de atendimento à população. No lugar de remédios, barcos e cesta básica, mandou balas de borrachas e força policial.

Antes mesmo da entrada de forças policiais na Terra Indígena, esta narrativa já possuía seus vilões e seus heróis, nesta cruzada escrita mais uma vez contra o indígena, foi a dicotomia o elemento principal. Sem barragem, sem água, sem cheias, uma imagem de indígena que se contrapõe ao Vale do Itajaí do desenvolvimento econômico foi reforçada mais uma vez. Ou melhor, como preferem denominar o Vale Europeu.

Georgia Fontoura – Bacharel em Direito, Doutora e Mestre em Desenvolvimento Regional (FURB)

Rodrigo Wartha, Historiador, doutorando em História (UDESC)

Josué de Souza, Cientista Social, Doutor e Mestre em em Desenvolvimento Regional (FURB)

 

4 Comentário

  1. Excelente e completa abordagem! Infelizmente temos no estado sucessivos governos que se superam na incompetencia e chegamos ao fundo do poço com o atual plantonista! O comparativo com bugreiros não é em vão!!

  2. Concordo com o texto , menos na parte que onde escrevem que o governo não atendeu neste final de semana o protocolo , discordo .São sete caciques e muitos deles com interesses pessoais , com interesses velados . Quem escreveu o texto deveria ir nas aldeias e ver o que os “ditos” índios fazem no seu dia a dia .

  3. Faltou comentar que a barragem encontra-se nesse estado de conservação porque foi depredada e inutilizada pelos índios em 2014, e que estes impedem a reparação e recuperação da estrutura, alegando o não cumprimento de exigências. Exigências essas que são alteradas ou acrescidas a cada rodada de negociação.

  4. Bla bla bla… é só interesse econômico e culpar os mais fracos… Resumindo o estado é criminoso e vai causar uma desgraça se estas barragens estourarem…

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*