O convívio intenso e longo com o poder gera poderoso efeito narcotizante. Transforma seres mortais, pessoas simples e humildes, gente com histórias iguais a de seus semelhantes, em “divindades”. A que se deve essa distorção? À armadilha do falso retrato, da autocontemplação, que prende os homens públicos à paisagem de Narciso, aquele que foi condenado pelos deuses a se apaixonar pela própria imagem. Como conta a lenda, ele tomou-se de amores pela imagem quando se contemplava nas águas transparentes de uma fonte. Obcecado pelo reflexo, Narciso não mais se afastava da água, definhando até a morte.
O Brasil está recheado de narcisistas, pessoas fascinadas pelo próprio brilho, um brilho ilusório, porque muitas perderam poder, não o orgulho. Que tipo de mal os narcisistas cometem contra si mesmos e contra a sociedade? O maior dos males é a inação, a inércia, a perda do sentido de realidade. Presos no simulacro do poder, exibem um prestígio falso, que frequentemente conduz ao ócio. Aliás, praestigium, do latim, significa nada mais nada menos que artifício, ilusão, malabarismo. Os malabaristas da política, conscientes ou não, acabam promovendo a mistificação das massas, fazendo-as crer que seu discurso é a ação, o verbo é tão importante como a verba, a palavra é a extensão da verdade. O falatório no oceano da política é intenso. Cada qual com sua onda.
O brasileiro tem predileção pela cultura oral, uma das tradições mais ricas do país. Um passeio pela monumental obra do insuperável Luís da Câmara Cascudo, potiguar boêmio, bonachão e denso, que produziu a mais fecunda obra sobre a cultura popular brasileira, nos propicia abrangente visão. A tradição de oralidade penetrou profundamente nas veias, mentes e corações da representação política, a ponto de se atribuir, por muito tempo, a grandeza dos homens públicos não aos projetos e feitos empreendidos, mas ao domínio do verbo no palanque ou na tribuna parlamentar.
Duas historinhas mostram as faces da peroração tradicional da política. A primeira é a do baiano, embevecido com a retórica complicada, cheia de palavras difíceis de seu candidato, em um comício numa pequena cidade interiorana. Não se cansou de bater palmas, concluindo categórico: “não entendi nada do que o homem falou, mas falou bonito; vai levar meu voto”. A segunda historinha é a do candidato a deputado, que, arrebatado, enérgico, espumando de civismo, discorria sobre o valor da liberdade. Argumentava que um povo livre sabe escolher seus caminhos, seus governantes, eleger os seus representantes, fazer as melhores escolhas. Para entusiasmar a multidão, levou um passarinho numa gaiola, que deveria ser solto no clímax do discurso.
No momento que julgou oportuno, puxou o passarinho da gaiola, e com ele na mão direita, gritou para a massa: “a liberdade é o sonho do homem, o desejo de construir seu espaço, sua vida, com orgulho, sem subserviência, sem opressão; Deus (citar Deus é um recurso muito usado) nos deu a liberdade para fazermos dela o instrumento de nossa dignidade; quero que todos vocês, hoje, aqui e agora, comprometam-se com o ideal do homem livre. Para simbolizar esse compromisso, vamos aplaudir a soltura deste belo canário, que vai ganhar o céu da liberdade”. Ao abrir a mão, viu que esmagara o passarinho, sem perceber a mão contraída. Quanta decepção. A frustração por ter matado o bichinho acabou com a euforia e as vaias substituíram os aplausos. Um desastre. É sempre assim quando não se controla a emoção. O discurso político atira, frequentemente, na razão.
Juntando-se, então, o narcisista e o demagogo, o verborrágico e o reizinho cheio de empáfia, obtém-se a receita do perfil que pretende ser o modelo de representação das massas. É a junção do ruim com o péssimo, de Narciso com Justo Veríssimo, canhestro personagem do saudoso Chico Anísio. Quando essa moldura aparece na parede, a política volta a ser aquilo que Paul Valéry mais temia: “a arte de impedir que as pessoas cuidem do que lhes dizem respeito”. Nesses tempos de redes sociais, de surgimento de novas fontes de poder, de intercomunicação entre os influenciadores da sociedade, urge ter cuidado. O discurso com firulas pode arruinar os atores. Não se engana mais como antigamente; os atores são flagrados quando escondem o lixo debaixo do tapete; ou, ainda, quando a maquiagem expressiva procura disfarçar a deficiência do pensamento.
Criar adornos populistas nas falas de palanques, carregar passarinhos em gaiolas para soltá-los em comícios, enfim, enfeitar o verbo com dribles linguísticos já não puxam a aclamação das multidões. Promessas mirabolantes não entram na cachola do eleitor. Esse é um alerta para o ano eleitoral em curso.
Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político
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