Opinião | Eleições Municipais VII: campanha eleitoral, é preciso atravessar o deserto

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Em meados do século XIX, Nietzsche, o filósofo dionisíaco e, que nos apresenta em uma de suas obras (“O crepúsculo dos ídolos ou como filosofar com o martelo”), como filosofar com o martelo articula análise diagnóstica das sociedades ocidentais detectando a chegada insidiosa e tormentosa do niilismo no seio da cultura e da dinâmica civilizatória do mundo moderno. O niilismo é assim um forasteiro, mantido à distância, ignorado pela caravana civilizatória que atravessou os dois mil e quinhentos anos que trouxeram os ocidentais até à modernidade. Porém, no momento em que alcançamos as fronteiras da modernidade, do território de uso exclusivo da razão, chega também o niilismo. Ele, forasteiro, sempre esteve presente/ausente, à meia distância do cortejo civilizatório, à espreita do momento exato, do grande cansaço vital, da morte de Deus, da necessidade de eleição de novas transcendências, da reafirmação da moral e de sua repressão das potências vitais humanas.

Atônito e interrogativo de quem não entende o que está acontecendo, vocifera o homem moderno: “O niilismo está a porta; de onde nos vem esse mais inquietante de todos os hóspedes?” (Vontade de Potência, p. 27). Mas, Nietzsche pensador explosivo, extemporâneo, um conhecedor corajoso dos mais profundos abismos humanos e dos mais altos montes a que se pode elevar a condição humana, é detentor de uma ampla e arguta visão para as condições mais baixas e mais altas nas quais se encontra a vida humana. “Para os sinais de ascensão e declínio tenho um sentido mais fino do que homem algum jamais teve, nisto sou o mestre par excellence – conhece ambos, sou ambos.” (Ecce Homo, 1995, p. 23). Sabe que este hóspede incômodo veio para ficar e desencadeará, durante sua estadia, sensações de desconforto, mal-estar, senão de desespero entre os homens. Mas, onde se apresenta o mais profundo desconsolo e perdição, ali pode estar também a salvação. “(…) porque o niilismo é a lógica de nossos grandes valores e ideais pensados até o fim, – porque nós primeiro tivemos que vivenciar o niilismo para descobrir, ver por trás o que era propriamente o valor desses “valores”… Teremos necessidade, algum dia, de novos valores…” (Vontade de Potência, 2008, p.24).

Niilismo. Perda de sentido, de finalidade existencial, social, política e econômica. Ausência de referências, de balizas norteadoras de possíveis caminhos seguir. “Para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve” (Alice em busca do país das maravilhas). Ausência de sensibilidade estética, de disposição para reconhecer o que é o belo e o que o bem. Indiferença às demandas éticas da coletividade e, até mesmo do cuidado com a vida em sua totalidade de formas de manifestação existencial. Desconhecimento, ou desconsideração da arte da política como condição constitutiva da condição humana. Somos humanos na medida em que convivemos e compartilhamos o mundo com os outros seres humanos. Lembremo-nos de Aristóteles: “O homem é um animal que fala (detentor de linguagem articulada) e, portanto um animal político”. Niilismo que se manifesta na compreensão da política como acesso ao poder que a máquina estatal pode proporcionar para determinados grupos. Ou então, na concepção daqueles que tomam a política como uma profissão com remuneração garantida, mesmo que a ação política se apresente descomprometida com os interesses da coletividade. Niilismo que não se esconde, pelo contrário, se escancara nas siglas partidárias destituídas de suas ideologias e, sobretudo destituídas de propostas para o compartilhamento da gestão pública com a sociedade, com a comunidade. Niilismo profundo que se apresenta nos discursos de lideranças partidárias e de candidatos, cuja justificativa à sua candidatura é perseguir supostos anarquistas, socialistas e até comunistas que insistem com o tema da justiça social como condição fundamental para o desenvolvimento do país. Niilismo …

A politóloga Hannah Arendt num belo texto intitulado: “O deserto e o oásis”, argumenta que no deserto nem tudo esta perdido. Evidentemente ao caminhar sob o sol escaldante e, pisando na areia em brasas as chances de encontrar formas de vida é reduzida e, mesmo ao encontrá-las talvez não se apresentem amistosas. Mas, no deserto também há a possibilidade de se encontrar um oásis. Alguma sombra que amenize a intensidade dos raios do sol. A temperatura amena, acolhedora e propicia à vida. Um pouco de água para matar a sede e, a possibilidade de encontrar mais formas de vida e, quem sabe até de interagir com elas. No oásis é possível descansar, cuidar da vida e, retomar o fôlego para voltar à caminhada.  

Seguramente no decorrer da campanha eleitoral apresentar-se-ão candidatos “oásis”. É fundamental prestar atenção nas propostas destes candidatos, podem ser portadores da política, da arte de dialogar, de apresentar propostas interessantes em relação às demandas da sociedade, ao cuidado com os bens públicos. Quem sabe tais propostas revelem a compreensão de que a gestão pública se caracteriza por compromissos com o espaço público, com os bens públicos, que como tais pertencem à comunidade. Sobretudo, de que a gestão pública necessita reafirmar cotidianamente o compromisso do amplo debate com os mais diversos segmentos da sociedade em relação a condução presente da cidade-comunidade, preservando-a e potencializando-a para as futuras gerações. Tal condição anuncia a disposição do candidato, se eleito, de promover a participação da sociedade no debate em torno das questões públicas. 

Mas, é preciso considerar as manifestações de candidatos do “deserto”.  Estes em sua maioria não possuem propostas para a “gestão pública” participativa e comprometida com o compartilhamento das decisões estratégicas da cidade-comunidade. Possuem “promessas”, de emprego, de pagamento de contas de luz, de água, de aluguel, de farmácia e, até de mercado, entre outras negociatas deste gênero. Anunciam que irão cuidar da saúde, da educação e, até das criancinhas. Sabem que a prestação de serviços públicos são temas sensíveis para a comunidade e, falar das criancinhas comove até os corações mais empedernidos.  

Os candidatos do deserto anunciam seu ódio à política. Segundo tais candidatos eles são a garantia de uma “nova política” pautada nos valores, da família, da pátria, da propriedade, do pastor, do padre, ou de qualquer outro líder religioso, ou mesmo oportunista de plantão. Desconsideram tacitamente que a esfera da ação política está comprometida única e exclusivamente com os assuntos públicos que dizem respeito aos interesses da cidade-comunidade. O candidato do “deserto” esconde sua ausência de propostas no anuncio de perseguição de outras tendências políticas e ideológicas. É o representante por excelência do aniquilamento da política como arte da negociação entre seres humanos em relação ao espaço público. E não esqueçamos do pior dos candidatos do deserto, “o mentiroso”, o propagador de fake news, aquele que destrói, emporcalha a mais nobre condição humana que é arte da política, que se caracteriza por ser a esfera da negociação em torno do compartilhamento do mundo entre as presentes e futuras gerações. Estes candidatos descomprometidos com a qualidade do debate público precisam urgentemente ser banidos da política. A conivência com este lixo social cobra seu preço na dura moeda do sofrimento humano, os exemplos históricos do fascismo e do nazismo são clarividentes, dispensam maiores esforços de argumentação, ao menos neste texto em seus limites. 

E o eleitor? Este se encontra desafiado a se posicionar diante do niilismo, do deserto na política que avança a passos largos na atualidade.  É imperativo que o eleitor tenha consciência de que voto não tem preço, tem consequências. Mesmo que esta frase se apresente como um desgastado jargão é preciso insistir nele, pois escolhas eleitorais realizadas sem critérios e compromissos com o espaço e os bens públicos se apresentarão na prática como continuidade da destruição do mundo politicamente compartilhado entre as presentes e as futuras gerações.  Participar da campanha eleitoral, fazer escolhas pelas melhores propostas é o desafio imediato até o dia das eleições. Mas, passadas as eleições apresenta-se a tarefa mais desafiadora que é o envolvimento com o debate público e, a exigência do compromisso dos eleitos com a abertura à participação dos cidadãos em relação aos assuntos de interesses coletivo, da cidade-comunidade. Ainda cabe ao leitor exercitar seu direito ao voto, votando nos candidatos que considera comprometidos com o debate público, com o cuidado com os bens públicos pertencentes à coletividade. Porém, se considerar a ausência de candidatos qualificados, o eleitor poderá anular seu voto demonstrando inconformidade com o niilismo político expresso pelas diversas candidaturas durante a campanha eleitoral.

Finalizando estas considerações é preciso observar que diante do niilismo da política demarcado pelo esvaziamento do debate público em torno da afirmação do espaço e dos bens públicos diante da voracidade dos interesses privados em privatizar o mundo humano, de privar as presentes e futuras gerações do direito a uma vida humana digna, de impedir o compartilhamento dos bens e da riqueza socialmente produzida pelo trabalho humano, todos os governos do mundo (na forma dos três poderes: executivo, legislativo e judiciário) que desconsideram tais urgências podem ser legalmente constituídos, mas são ilegítimos diante das urgências humanas e vitais em curso. Na perspectiva do filósofo e jurista italiano Giorgio Agamben: “Hoje não há na terra um chefe de Estado, que não seja, nesse sentido, virtualmente um criminoso. Qualquer um que, hoje, vista o triste redingote da soberania sabe que pode ser um dia tratado como criminoso por seus colegas. E certamente não seremos nós a nos compadecermos dele”. (Agamben, 2015, p. 100)

Ou dito de outra forma, é preciso devolver a política ao uso comum, ao debate público. Os sibilinos avisos da comunidade científica em relação ao esgotamento dos bens vitais do planeta necessários à manutenção da vida; a capacidade incomensurável de produção de bens e riqueza e o aumento vergonhoso da fome, da pobreza, da miséria; a necessidade de revermos a utopia do progresso e do desenvolvimento sobre bases sociais cooperativas; a urgência de afirmação de laços de fraternidade (um dos ideais esquecidos da Revolução Francesa) e da empatia com o sofrimento humano e, infringido a vida em sua totalidade de formas de manifestação, requer com urgência a retomada pelo comum, pela comunidade da política. A política é o que nos resta…  É tarefa intransferível neste tempo que nos resta nos livrarmos do niilismo, do deserto, da mentira, da violência, do sequestro da política por interesses privados patrimonialistas e oferecer às presentes e jovens gerações uma política comprometida com a vida, com a continuidade do mundo.

A política é uma arte e, como toda forma de arte se expressa na harmonia das formas, na incessante busca do belo, na expressão pública da beleza. O belo faz bem aos olhos, ao mundo, à vida. Viver é um constante esforço de buscar por meio das relações humanas a harmonia, a beleza e a felicidade. Assim, é inerente a arte da política o compromisso com o belo, com a verdade no espaço público. Sob tais pressupostos, a  arte da política é exercida entre amigos. A amizade se caracteriza pela disposição política dos amigos compartilharem a beleza, a bondade, a verdade, a felicidade, a vida, o mundo. Desta condição vital resulta que a política é a capacidade de partir de o dissenso alcançar o consenso em torno dos bens vitais constitutivos do mundo e, compartilhados pela comunidade, pela coletividade.  

Nesta direção, o deserto político em que nos encontramos é a expressão da inimizade, da desconfiança, do embrutecimento, da violência que invade o espaço público e destrói as possibilidades do cuidado com a vida e, do compartilhamento do mundo. Em frente, atravessar o deserto é preciso, sobretudo para oferecer às jovens gerações a experiência da beleza, expressa na exuberância da vida e do mundo. É preciso devolver a política ao uso comum, a plena participação popular nas mais diversas instâncias dos poderes públicos, que na condução de poder constituinte é a única instância social que detém de forma legítima o direito ao espaço público, aos bens públicos.

Prof. Sandro Luiz Bazzanella, Professor de Filosofia

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