Corriqueiramente, cadeira de dentista não é opção de lazer. Mas, no meu caso, é mais que anestesia, broca e pavor. O Rafael Minusculi sempre provoca com alguma indagação e, já dizia o mais famoso físico, “não são as respostas, mas as perguntas que movem o mundo”. E foi de uma pergunta do Rafael que, entre comentários elásticos e respostas mímicas, veio mais uma sinapse pra coluna “O Brasil Como Nos Parece”.
No debate da TV Cultura à prefeitura de São Paulo, a cadeirada do Datena no Marçal chocou comentaristas da imprensa. A atitude do agressor e do agredido foram repudiadas. Contudo, a cena é uma letra da política atual, propicia à baixaria, demagogos e narcisistas, e escancara a decadência do sistema. Entender a causa disso passa pelo eleitor, mas encontra o obstáculo onde deveria estar a saída: nos produtores do conhecimento sociológico, que desviam o foco do problema original do sistema.
A imprensa reage convencionalmente. Acerta na defesa da civilidade e é diplomática em respeito ao eleitor. O editorial de um jornal tradicional, por exemplo, intitulou sua opinião de “Cadeirada no eleitor”. Daí, Eu e o Rafael nos perguntamos: mas, afinal, o eleitor é uma vítima? Não é o que parece, porque a baixaria é o que prende a atenção do eleitor médio – e não me excluo. Expressando sua repulsa à política, ele procura uma alternativa que represente o antissistema.
Indignado, o eleitor suscita a emergência do que aprendemos a denominar de “populismo”. Significa a ascensão do líder demagogo, que fala a língua do demo – que significa povo. É produto do transbordamento do sistema político, quando corrupção, privilégios e incompetência fazem crescer a desigualdade e a escassez de recursos. É quando, não entendendo o sistema, o homem comum renova suas esperanças no herói redentor. E ali está o eleitor, pronto a apoiá-lo, em tudo que diz e faz.
Então, o demagogo não é a causa. É o efeito da aspiração do eleitor a procura do líder capaz de enfrentar o sistema, cuja engrenagem o eleitor não compreende. Corajoso e justiceiro, o líder promove a baixaria, mas é contra o sistema, então vale. Enquanto isso, nas universidades e na mídia, os produtores do conhecimento sociológico combatem o efeito, ao invés da causa: a ignorância do eleitor sobre a raiz do problema e o funcionamento do sistema.
O que os produtores do conhecimento sociológico têm ensinado a meio século é que o problema original de qualquer sociedade urbano industrial liberal democrática estaria na propriedade privada. Seria a fonte do conflito entre o capital e o trabalho, que gera a dicotomia “opressor x oprimido” – mantra de educadores. Seria a causa original de toda a desigualdade social. Nessa perspectiva, todos os ajustes sistêmicos, toda a educação, devem partir desse pressuposto.
A consciência sobre isso seria, então, o ponto de partida não só pra compreender, mas pra mudar o sistema. Mesmo que o socialismo tenha ido pro brejo da história, todo o sistema liberal democrático precisaria ser constantemente aperfeiçoado pra diminuir as deficiências oriundas do problema original. Essa visão está nos conteúdos curriculares, evolui, se sofistica, mas mantem a essência. Se reproduz e se espraia entre os mais “articulados”, mas não convence o trabalhador, o homem e a mulher comuns.
Por insistirem nessa visão, os produtores do conhecimento sociológico não têm ajudado o homem comum – incluindo secundaristas e universitários – a compreender o sistema. O resultado é que o problema persiste, o eleitor se sente confuso, enganado; só sabe que o sistema é corrompido e que não há saída. Quando vota, procura uma (re)ligação carismática com alguém que represente o antissistema e a redenção. Tem o mesmo sentido da religião (de religare).
A causa da baixaria, do populismo e da decadência do sistema está na ignorância e desesperança do eleitor, que faz nascer o demagogo, já avisava o dramaturgo Bertold Brecht (1898-1956), oras!. Mas qual seria a função dos produtores do conhecimento sociológico? Admitir que o funcionamento do sistema não está no conflito entre capital e trabalho, opressor e oprimido. Admitir que o problema original do sistema não está na propriedade privada.
A origem e o funcionamento do sistema, que promovem a desigualdade, a baixaria, a ignorância e o populismo, residem na infinidade dos privilégios que só crescem, sem freios legais, nem morais por parte dos privilegiados. A origem está na apropriação legal da propriedade pública, que se transforma em propriedade privada e gera o conflito real, entre o Estado e a Sociedade produtiva. Essa é a chave pra entender o sistema, o que, por razões de crença e corporativismo, os produtores do conhecimento sociológico no Brasil ignoram.
Quando uma futura geração de produtores do conhecimento sociológico ajudarem o homem comum a entender isso, a ignorância do eleitor diminuirá e o interesse pelo debate de ideias aumentará. Popularizar a ciência é uma coisa fácil, como ensinaram os melhores cientistas da história: é só dizer a verdade. Mas, essa é uma conversa extensa, que pretendemos alongar no próximo artigo desta Coluna “O Brasil como nos parece” – diferente do Brasil apresentado pela hegemonia dos produtores do conhecimento sociológico.
Walter Marcos Knaesel Birkner, Sociólogo e autor do livro Sociologia produtiva: BNCC, desenvolvimento e interdisciplinaridade
Seja o primeiro a comentar