Opinião | Direito à Paisagem e a Blumenau nas Alturas

Foto: reprodução

Estamos vivendo em Blumenau um novo fenômeno em nossa paisagem, o surgimento dos edifícios que utilizam o potencial máximo de altura que o plano diretor permite através do uso do gabarito livre, essa permissão é relativamente recente, e hoje começa a aparecer na paisagem os resultados e causa inclusive um novo frisson entre as construtoras, para saber quem será o dono do edifício mais alto da cidade, e nessa disputa, delírios e vertigens se estabelecem, parafraseando o termo usado pelo jornalista Raul Justelores, hoje temos a Blumenau nas alturas.

Acontece que, essa transformação na paisagem está sendo regulada através de uma legislação pautada apenas no código de obras, legislação ambiental e EIV – Estudo de Impacto de Vizinhança. O planejamento urbano é uma ciência que integra muitas disciplinas,  a falta de detalhamento da legislação urbanística deixa esse processo precário, cada aprovação hoje é uma batalha, leva-se anos para aprovar um edifício que queira se enquadrar nessa legislação, e ao final, analisando os argumentos dos EIVs, não se tem uma diretriz clara daquilo que precisa ser garantido ou orientado, tem EIV que usa argumentos do tipo o empreendimento  tal causou mais impacto que esse, não é assim que se orienta o desenvolvimento urbano de uma cidade, a prefeitura precisa ter seus dados, estudos e indicadores multidisciplinares para saber qual paisagem orientar para fortalecer a identidade, sustentabilidade e eficiência da cidade, e isso numa lógica democrática que qualifique a vida de todos.   

Blumenau precisa de um Plano de Paisagem, na mesma lógica que se faz o Plano de Mobilidade, os planos são documentos que detalham as diretrizes do plano diretor. Hoje estamos assim: o plano diretor diz que libera o gabarito e na hora de aprovar os projetos é um salve-se quem puder! EIV com números indecifráveis, audiências públicas esvaziadas, e conselhos de patrimônio e de planejamento com conselheiros tomando decisões que impactam a vida de todos sem nenhuma noção dos resultados que aparecerão na paisagem, sem contar o vaivém de projetos criando muitos constrangimentos e insegurança para os investidores. Se tivéssemos um  Plano Municipal de Paisagem e de Patrimônio bem detalhados com diretrizes claras e com dados confiáveis, assim como temos o Plano de Mobilidade, a prefeitura teria muito mais conforto e condições de regular o desenvolvimento urbano da cidade. 

Hoje estamos rendidos e sufocados pelos arranha-céus pipocando em todos os lugares e sem falar as parcerias público-privadas que invadem o espaço público com todas as quinquilharias que desejam promover em troca de ter nossas praças centrais com banheiro e vigilância funcionando, basta ver o que virou aquela praça em frente à prefeitura, não cabe mais ninguém ali! E para ajudar, agora eles começaram a colocar placas dizendo que aquela parafernália toda é uma ajuda. Sinceramente, eu pago meus impostos em dia e pago caro, não preciso de ajuda para ter um espaço público que funcione e que esteja livre para eu poder circular. 

Outra situação que nos coloca em risco é o processo de privatização da paisagem, com o argumento de que o gabarito livre e outorga onerosa (recurso que é cobrado para se construir além do permitido pelo plano diretor), é uma forma de incentivar o desenvolvimento econômico da cidade e trazer mais vitalidade aos espaços consolidados por infraestrutura, como é o caso do centro da cidade e o bairro da Ponta Aguda. O que acontece é que os empreendimentos que estão sendo construídos, a maioria deles tem 1 ou 2 apartamentos por pavimento, estamos verticalizando com pouca densidade e alguns sendo aprovados em áreas de risco. 

A matemática para decidir onde e quanto é viável construir o gabarito livre, deveria ser regulado pela prefeitura, através da integração de dados dos planos de mobilidade, legislação ambiental, cartas da paisagem e de capacidade de suporte, isso traria para os nossos EIVs, uma direção coordenada pela prefeitura, hoje isso acontece de forma precária,  ficando a cargo da empresa contratada, ou seja é o proprietário regulando seu próprio empreendimento e a prefeitura regulando a contrapartida, ou seja nosso plano diretor virou um balcão de negócios, nas audiências públicas os argumentos se resumem às questões econômicas, como se Blumenau só dependesse de arranhas céus para sobreviver e gerar empregos. 

Precisamos urgentemente de uma regulamentação detalhada para a ocupação dos sítios mais sensíveis, como centro histórico, bordas e limites de morros e áreas de preservação. Essa regulamentação não é para impedir o desenvolvimento, pelo contrário, é para valorizar os empreendimentos consolidando uma identidade paisagística para Blumenau, que potencialize a imagem de Blumenau com sua escala, vegetação e luminosidade peculiar, característica que a difere de qualquer outra cidade, requisito extraordinário para uma cidade que pretende se posicionar como destino turístico, cidade inteligente e sustentável. 

Blumenau não precisa ter cara de Dubai e muito menos de Balneário Camboriú, Blumenau tem um dos horizontes mais verdes do sul do país, inserida no contexto regional de preservação do Vale do Itajaí, e mantenho o nome original do vale porque sim é o rio Itajaí-Açú e sua natureza que nos posiciona como paisagem cultural e natural, é com essa natureza que precisamos dialogar e poder continuar sendo observada por todos, todos os dias, eu diria até que o horizonte verde dos morros de Blumenau é remédio, é alívio. 

O desafio da verticalização, está nesse ponto, como conciliar o desenvolvimento urbano com o desenvolvimento sustentável da cidade, e nessa dimensão da sustentabilidade quero incluir o direito que temos à paisagem natural, entender nossa linha do horizonte, como bem cultural.

Na defesa de que Blumenau precisa ter seu plano de paisagem, é importante resgatar também que temos o direito à paisagem, previsto na Constituição no artigo 126, inciso V. “Paisagem Cultural”, que, desenvolvida pela Unesco² desde o início dos anos 1990, compreende justamente as interações entre os aspectos natural e cultural, material e imaterial desses conjuntos, muitas vezes ignoradas. Estamos tratando aqui dos resultados da aplicação do plano diretor como está previsto hoje, com todas as inseguranças jurídicas e técnicas que mencionei acima e o direito de ver e estar na paisagem. 

Nessa perspectiva, o detalhamento da legislação urbanística nos traria uma orientação mais assertiva, a partir da ideia de cidadania paisagística, defendida por Barbosa³, que trás uma abordagem da paisagem como um recurso que pertence a todos, onde todos têm o direito de ver, ser e estar na paisagem, assim como o dever de participar das ações de gestão de forma coletiva e comprometida. 

Essa dimensão democrática também é considerada na Carta da Paisagem Brasileira , documento elaborado pela ABAP – Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas escrita em 2009 onde obteve-se, a aprovação da portaria nº 127, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e artístico Nacional- IPHAN, criando a chancela das paisagens culturais brasileiras, a carta brasileira foi escrita a luz dos objetivos da Convenção Global da Paisagem proposta pela IFLA a Federação Internacional de Arquitetos Paisagistas (IFLA) são: promover a proteção, gestão e planejamento sustentável de paisagens de todo o mundo, através da adoção de convenções da paisagem nacionais, que reconheçam a diversidade e os valores de todas as paisagens, e adotem princípios e processos relevantes para salvaguardar os recursos da paisagem em cada local. A carta brasileira da paisagem traz 12 princípios, entre eles cabe o destaque a esses dois para nos ajudar a compreender o que se passa aqui em Blumenau:

4.7 – O direito democrático à qualidade ambiental e paisagística

A qualidade ambiental e paisagística é direito de todos os brasileiros. A chancela da Paisagem Cultural Brasileira já significou grande passo. Que valoriza a relação harmônica do homem com a natureza. Estimulando a dimensão afetiva com o território e tendo como princípio a qualidade de vida da população, assegurando assim a qualidade ambiental e paisagística como um direito de todos.

Neste princípio, a carta destaca a importância dos instrumentos a serem aplicados para assegurarmos este direito, e recomenda a obrigatoriedade dos Planos de Paisagem nas unidades de gestão territorial. 

Sobre ser peculiar e se reconhecer na paisagem e o desafio econômico.

4.6 – A necessidade do respeito e da preservação de nossas paisagens.

É necessário que se reconheça a importância da preservação das paisagens e seus compartimentos morfoestruturais e fitogeográficos significativos como exemplares da memória coletiva dos nossos habitantes. Paisagens de exceção, devido à sua unicidade como testemunhas de uma história climática, evolutiva e cultural, devem ser consideradas como prioritárias à preservação. O reconhecimento, a partir das comunidades locais e suas referências, dos elementos simbólicos e significativos, a serem preservados dentre suas paisagens cotidianas, os critérios cênicos e de monumentalidade devem sofrer o acréscimo de outros critérios para a delimitação do que seja patrimônio. Considerar o respeito à paisagem e o direito à paisagem como meios de garantia da cidadania e da própria sobrevivência das cidades.

Essa é a questão, a necessidade de encontrar um caminho de equilíbrio para o desenvolvimento urbano, e em alguns casos a solução não será a verticalização, e sim o inverso, em sítios e horizontes peculiares, como é o caso do empreendimento previsto próximo ao Parque São Francisco, a preciosidade pode ser o valor de troca, de tão peculiar, porque não cobrar mais, verticalizar e construir menos? Trazer a linha do horizonte natural como limite a ser visto e preservado, como tão sabiamente defendia Hans Broos, arquiteto e urbanista, estudioso da paisagem de Blumenau, em seus estudos defendia que o limite para verticalização para Blumenau seria de 15 pavimentos, com essa escala teríamos a vista do horizonte dos morros preservados, esse limite é que precisamos conferir, não é tratar a cidade toda com a mesma régua, e sim ter critérios mais elaborados, que dirija os limites da verticalização na altura que tenha harmonia com a paisagem, segurança ambiental, capacidade de suporte e com o devido respeito a comunidade que nela está inserida.

Daniela Sarmento, arquiteta e urbanista

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