Opinião | Patrimonialismo, a gigantesca árvore

Imagem gerada com IA

Um mar de denúncias toma conta do território. Por todos os lados, chovem denúncias. A Pátria Amada está mais parecendo uma Pátria des(amada). Estamos vendo coisas erradas do Norte ao Sul. Ou será que essa onda oceânica do denuncismo é coisa normal? Tentemos entender. Há de se compreender a índole do Brasil.

Tudo começa com a Árvore do patrimonialismo, a âncora dos ismos em nossa cultura política: caciquismo, fisiologismo, familismo, filhotes do patrimonialismo. E de onde vem essa sopa? Da herança deixada por dom João III, entre 1534 e 1536, quando criou as capitanias hereditárias e as distribuiu entre os donatários.

Tem origem aí a imbricação entre os espaços públicos e privados. Origina-se aí essa mistura. Os donatários entendiam que as capitanias eram suas, propriedade privada. Esse é o berço do patrimonialismo. A corrupção nasce no leito desse rio. O Brasil é o País mais corrupto da América Latina. Numa lista de 146 Países, ocupamos o 29º lugar, segundo a Transparência Internacional. Nos 5.565 municípios brasileiros, a corrupção grassa em 85%.

E onde nasce a corrupção? Resposta: na índole de nossa comunidade política. Resgato o chiste. Há quatro tipos de sociedade no mundo: a inglesa, liberal, onde tudo é permitido, salvo o que é proibido; a alemã, durona, onde tudo é proibido, salvo o que for permitido; a ditatorial, tipo Coréia do Norte, onde tudo é proibido, mesmo o que é permitido; e a brasileira, onde tudo é permitido mesmo o que é proibido. Nelson Rodrigues dizia que o brasileiro padece do complexo de vira-lata, traduzindo a inferioridade em que o nativo se coloca ante o mundo. Hoje, há um complexo maior: o de Faraó. Haja olhos para contemplar a arquitetura faraônica que se espraia pelo País na forma de construções suntuosas, edifícios majestosos, obras de desenhos arrojados.

Que país faraônico. O Brasil se habilita a ser o hábitat ideal para abrigar o sono eterno dos faraós, fustigados pelo eco da turba que chega às suas tumbas. Se suas majestades só se sentem confortáveis em pharao-onis, termo do velho latim para significar “casa elevada”, é isso que encontrarão no Planalto brasiliense, também conhecido como morada dos faraós no século 21. O fausto, a opulência, o resplendor, a exuberância se elevam nos espaços, sob o ditame inquestionável de que, se a obra tiver de ser construída em Brasília, haverá de receber o selo de Oscar Niemeyer e, por consequência, não sofrerá limites de gastos.

Vejam o pacote do Haddad, lançado esta semana. Um vasto e tímido programa. Quiseram fazer reforma fiscal com reforma do IR, para agradar a classe média. Lula só pensa naquilo, em 2026. O mercado reagiu. Um dólar tem o poder de comprar mais de R$ 6. E tome inflação pela frente. A economia terá a força para derrotar Lula ou reelegê-lo. Daí a busca de Lula pelo aumento de sua base de apoio.

Nossa legislação abre portas. Deixa de lado o princípio da equidade da representação para compensar os desequilíbrios regionais pela via parlamentar, agravando uns partidos e beneficiando outros. Assim, o sistema torna-se injusto. A indisciplina partidária leva o presidente a sair a campo, tentando cooptar alianças para formar uma coalizão. A composição do governo implica, necessariamente, inserção de partidos na administração, gerando ferrenha disputa entre eles. A consequência se faz sentir na permanente instabilidade das relações entre Poderes Executivo e Legislativo.

A base da maioria, vetor de democracias consolidadas, é ameaçada. Para aumentar os buracos o poder presidencial patrocina uma democracia delegativa, dentro da qual o chefe do Executivo usa e abusa de medidas excepcionais para legislar, no caso, as medidas provisórias e emendas à Constituição. Alguém já disse: “O governo é como se fosse um pote de água benta, cabe tudo ali.” Acrescento: foi o próprio Lula quem disse isso.

Entende-se, pela imagem extravagante, que a água abençoada é a mais apropriada para molhar dedos, sejam eles sujos ou limpos, de cristãos e não-cristãos que se benzem nos templos. Desse modo, a democracia brasileira seria o hábitat de espécimes que, de tão variados, só mesmo aqui encontram condições de sobrevivência. Basta contemplar o arranjo federativo, que abriga figuras como presidencialismo imperial, bicameralismo, sistemas proporcional e majoritário e multipartidarismo.

Em suma, há um PIB e meio desperdiçado no meio dessa bagunça, ou seja, jogam-se no lixo R$ 5 trilhões. Se a montanha de riquezas perdidas pudesse ser preservada, o País estaria, há tempos, no ranking mais avançado das potências. A que se deve isso? Primeiro, a uma cultura política plasmada no patrimonialismo, explicada anteriormente. O Estado é um ente criado para garantir nosso alimento e bem-estar.

O jeito perdulário de ser do brasileiro começa, portanto, com a visão do Estado-mãe, providencial e protetor, no seio do qual se abrigam a ambição das elites políticas e o utilitarismo de oportunistas. O (mau) exemplo dado pelos faraós do topo da pirâmide acaba descendo pelas camadas abaixo, na esteira do ditado “ou restaure-se a moralidade ou nos locupletemos”, que uns atribuem a Stanislaw Ponte Preta e outros ao Barão de Itararé.

E assim, com todos locupletados nas frentes da política, resta rezar um Pai Nosso, sob a crença de que Deus é brasileiro e haverá de nos salvar.

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

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