Opinião | Consistência de pudim: manual de sobrevivência para uma sociedade (digital) em colapso

Imagem gerada com IA

Querido semanário de uma sociedade em frangalhos. Era para ser simples… viver. Até acho que os maias, os incas, os astecas, todos aqueles que caminharam nesta terra quando tudo era mato, também pensavam nas dificuldades dos dias. A evolução, possivelmente nem sonhada por eles, trouxe tantas complexidades que, talvez, atualmente, muitos desejem voltar para as cavernas.

Avançamos os primeiros 20 dias de 2025 e parece que nosso barco já navegou por um ano inteiro. Um desastroso iceberg da estupidez coletiva, construído sorrateiramente na última década, abaixo da linha do horizonte, surgiu para complicar tudo. Que gritaria é essa? Estávamos navegando tranquilos e, de repente, fomos arremessados pelas redes sociais em um turbilhão de absurdos.

Se você chegou até aqui, permita-me apresentar três evidências irrefutáveis de nossa capacidade magistral de complicar o óbvio e tornar os dias ainda mais imprevisíveis e estranhos. Saia do mar e segure firme na cadeira: precisamos de leis – e babás – para viver em sociedade. Toda a burocracia do Estado é mobilizada para obrigar o infeliz a abaixar o som na praia, exigir que celulares não entrem nas escolas e garantir que a mentira não ganhe pernas – ou nadadeiras – e se espalhe por aí.

E assim, o que deveria ser uma simples travessia pelas águas da convivência transforma-se em um naufrágio diário. No timão, ideias tão firmes quanto um pudim de leite guiam a embarcação. Não bastassem as correntes da desinformação, os mares digitais fervilham com debates em que o óbvio precisa ser explicado, regulamentado e, muitas vezes, imposto. Será que desaprendemos as regras básicas do convívio? Ou será que nunca as aprendemos de fato?

Enquanto isso, seguimos debatendo se é realmente necessário um Estado que nos diga para abaixar o som, largar o celular e, quem diria, pensar antes de compartilhar. Três atos tão elementares que, em qualquer outra época, seriam função de pais, mestres ou da mais básica noção de respeito. Mas não, aqui estamos, com um iceberg de absurdos rasgando o casco da civilidade, enquanto nos perguntamos: como foi que chegamos a isso?

Os celulares permanecerem fora das salas de aula, o som baixo na praia e, quem sabe, um filtro crítico antes de acreditar em qualquer vídeo de políticos. Mas não. Precisamos de leis, decretos, campanhas. Precisamos que o Estado ocupe o lugar que deveria ser da decência básica, da educação doméstica, da conversa no jantar. Se isso não é falência, eu não sei o que é.

Parei para refletir: em que momento precisamos de uma lei para nos dizer que não devemos perturbar o próximo com música alta na praia? Quando foi que perdemos a capacidade de discernir que o momento de contemplação do mar merece mais respeito do que as batidas ensurdecedoras de uma música qualquer?

Nas escolas, os celulares brilham antes dos olhos das crianças. Pequenos altares digitais, conectados ao mundo inteiro, mas desconectados da sala de aula. Enquanto o professor escreve na lousa ou tenta conduzir uma conversa sobre cidadania, os alunos estão ocupados com outras missões: vencer no jogo, postar uma selfie, dar risada de um meme. A aula? Ela se tornou a trilha sonora de fundo para as notificações que piscam como estroboscópios. Precisamos realmente de uma legislação para fazer aquilo que deveria ser papel fundamental dos pais: educar seus filhos sobre o uso consciente da tecnologia?

Por que precisamos de uma lei para proibir o óbvio? Não é porque as telas apenas distraem – isso seria até o menor dos males. É porque elas consomem a atenção, a paciência e, no longo prazo, o aprendizado. Como já dizia Vargas Llosa em “A Civilização do Espetáculo”, a cultura dissolveu-se em entretenimento barato e, com ela, a capacidade de reflexão profunda. O que antes era um direito – o de ser educado em paz – virou um favor.

Mas o quadro mais preocupante talvez seja o da desinformação que transformou a política em um espaço de guerra. Até pouco tempo atrás, a palavra de um político era sempre recebida com desconfiança. Hoje, porém, engolimos qualquer história com a mesma facilidade com que uma criança acredita no coelhinho da Páscoa. Nossa capacidade crítica parece ter derretido como sorvete no asfalto quente.

Max Fisher, em “A Máquina do Caos”, fala de como as redes sociais se tornaram o campo de batalha perfeito para manipular nossas emoções. Criamos um espaço onde as mentiras viajam mais rápido que a verdade, embaladas por algoritmos que agem para gerar angústia, medo e revolta. Isso vende! E é a liberdade de deixarem que escolham por você a informação que receberá.

Um vídeo editado sobre o Pix? Uma denúncia falsa? Tudo se espalha porque é mais fácil acreditar do que pensar. Pensar dá trabalho, interpretar exige esforço. E o que fazemos? Compramos o pudim: doce, macio, consistente, mas que desmancha na boca sem nunca alimentar.

Somos a mesma espécie que mandou gente à Lua, sequenciou o genoma humano e inventou o pão de queijo. Mas aparentemente perdemos a capacidade de usar o bom senso sem precisar de um decreto oficial que nos diga que “incomodar o próximo é feio” ou que “a educação começa em casa”.

O espetáculo virou nossa realidade cotidiana. Transformamos tudo em show, em entretenimento vazio. A praia não é mais lugar de descanso, mas palco de performances sonoras. A escola deixou de ser templo do conhecimento para virar arena de disputa entre professores e smartphones. E a política? Ah, essa virou um reality show onde a verdade tem tanto valor quanto um prato de chuchu.

Talvez seja hora de dar dois tapas na própria cara e acordar. Não entendo como não ficamos cansados de brigar contra o som alto, de pedir educação, de tentar convencer alguém a checar a fonte de um vídeo antes de compartilhar.

Vou arriscar e repetir em outros termos. A nossa sociedade virou aquele pudim de leite que você tenta fazer sem ler a receita: bonito por fora, mas por dentro é uma tristeza só.

Acho que não falimos de repente. Fomos nos desgastando, pedacinho por pedacinho. Assim, cada vez que deixamos passar um comportamento incivilizado ou ignoramos a lógica em nome do clique fácil, afastamo-nos mais do que poderia ser uma sociedade funcional.

No fundo, somos mesmo um grande pudim de leite: macios por fora, sem substância por dentro. O desafio, então, é endurecer. Criar coragem para dizer “não”, pensar, ouvir mais o som do mar e menos o do caos. E, quem sabe, transformar o pudim em algo mais sólido, mais digno. Algo que possa, ao menos, alimentar o que resta da nossa esperança.

Tarciso Souza, jornalista e empresário

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