Dias atrás eu estava num local público e precisava lavar as mãos. O único banheiro disponível era um banheiro adaptado para cadeirantes. Como seria apenas para lavar as mãos, usei-o rapidamente, deixando a porta entreaberta, caso aparecesse alguma pessoa que necessitasse dele.
Naqueles instantes, eu me vi no reflexo do espelho. Eu estava de pé – como costumeiramente lavo minhas mãos. O espelho estava disposto na altura dos meus olhos e não era muito comprido.
Por ser professora do curso de Educação Especial, fiquei especialmente atenta àquele banheiro. Daí observei que as barras horizontais e verticais, bem como, a localização da papeleira e da saboneteira, estavam todos aparentemente colocados devidamente ao alcance de uma pessoa cadeirante. Todavia, notei que o espelho não estaria ao alcance dos olhos de um cadeirante.
Ali mesmo fui lembrando de algumas orientações sobre as barras e outros dispositivos/aparelhos para esses banheiros. Mas passei o restante daquele dia pensando no espelho. Será que o espelho está previsto nas regras para projetar um banheiro acessível? Se não existirem orientações específicas para isso, seria uma boa alternativa disponibilizar dois espelhos ali? Ou um espelho comprido, que fique ao alcance de pessoas de variadas alturas, estejam elas de pé, ou sentadas? Ou o espelho seria um item supérfluo, que não seria indispensavelmente necessário? Afinal, nem todos os banheiros públicos (sem adequações/adaptações para pessoas com deficiência) têm espelhos. Seriam os espelhos objetos fúteis, desimportantes?
Por curiosidade, ao chegar em casa, quando tive finalmente tempo para aquietar minha curiosidade, vasculhei na internet se existiam regras para a colocação do espelho nesses ambientes.
Sim. Espelhos estão contemplados nas regras acerca da acessibilidade nos banheiros. Inclusive há orientações específicas sobre o tamanho deles, e sobre a altura da parede em que devem estar colocados.
Certamente essa regra não estava sendo observada pela instituição em que utilizei o banheiro em questão. Por que ele havia sido colocado no alto? Será que a pessoa que fixou o espelho ali, se baseou no seu próprio uso cotidiano? Até porque, geralmente os espelhos estão realmente colocados nessa altura do banheiro (nos lavabos que não são destinados às pessoas com deficiência).
Ou, será que o espelho teria sido colocado no lugar determinado pelas regras, mas o uso diário de água e sabonete e seus respingos inerentes nele teriam contribuído para que o espelho fosse realocado para o alto? Afinal, é bem possível que um espelho que esteja à altura de um cadeirante receba maior quantidade de pingos de água do que um espelho que esteja mais alto. Mantê-lo limpo, presumivelmente requeira mais trabalho.
Outra hipótese emergiu: talvez, ao pendurar o espelho, a pessoa responsável por essa atividade tenha deduzido que apesar do banheiro estar adaptado para o uso de pessoas com deficiência, também poderia eventualmente ser usado pelas pessoas sem deficiência. Essa pessoa poderia ter pensado equivocadamente que pessoas com deficiência não se preocupam tanto com sua apresentação pessoal!
Por consequência, a condição de instalação do espelho seria, um reflexo de que a pessoa que colocou o espelho ali (ou da instituição que o mantém o espelho ali ainda) teria um preconceito relacionado com a reduzida vaidade das pessoas com deficiência, se comparadas às não deficientes? Mas quem foi que disse que pessoas com deficiência não são vaidosas, ou não se importam tanto com sua aparência?
Enfim, eu não havia entrado nesse banheiro para fins de avaliar a acessibilidade dele, nem dispunha de régua ou outros artefatos para tirar as medidas do espelho e da parte onde ele estava fixado. Não competia a mim investigar o(s) motivo(s) pelo(s) qual(is) o espelho estava ali, porém, durante dias, eu fiquei refletindo sobre isso…
Fiquei pensando quanto as pessoas com deficiência continuam sendo despercebidas na sociedade… Por tantos séculos elas ficaram isoladas do convívio social, estando restritas ao ambiente familiar (quando não ficavam inclusive circunscritas a um espacinho só para elas nos fundos do lar – sem ocupar áreas comuns das moradias)! Os tempos mudaram (mudaram?), hoje todos podem (podem?) circular os espaços públicos.
Será que o isolamento que manteve essas pessoas afastadas dos espaços públicos, ou a ausência (ou a mínima quantidade politicamente correta) de pessoas com deficiência nos retratos, imagens, ilustrações veiculadas pela mídia, fez com que a sociedade ainda não tenha se dado conta de que essas pessoas têm um reflexo quando estão diante do espelho?
Naquele banheiro em específico, suponho que os cadeirantes teriam acesso ao vaso sanitário, ao papel higiênico, à torneira, à toalha de papel. É bem provável que as necessidades fisiológicas poderiam ser executadas ali. A pia não parecia ser daquelas largas, que dificultam que pessoas cadeirantes ou com obesidade alcancem a torneira…
Mas, poder conferir a aparência não é algo assim tão necessário. Praticamente as pessoas jamais vão até ao banheiro apenas para conferir se o rosto ou os dentes estão limpos, o batom borrado, ou o cabelo ajeitado!
Talvez estejamos vivendo dias em que TODAS as pessoas possam usar o banheiro quanto à sua principal finalidade. Mas só ALGUMAS têm direito a contemplar ou a checar o seu reflexo. Por que só algumas? Por que ainda vivemos numa sociedade em que algumas pessoas são silenciadas, tratadas como se fossem invisíveis, esquecidas? No final das contas, para que elas precisam ver sua face reproduzida no espelho?
Além do mais, se eu estivesse num lavabo em que o espelho estivesse fixado perto do teto, ou um metro acima do alcance dos meus olhos, eu provavelmente acharia isso estranho, ou curioso… Acharia engraçado, uma piada de mau gosto, ou fora de propósito. Talvez ficaria irritada por não conseguir fazer uma inspeção no estado do meu semblante. E ali, no referido lavatório, quantas pessoas estranharam a posição do espelho naquele banheiro?
Para algumas pessoas essa crônica pode soar como algo banal. Para que tantas palavras digitadas por causa de único espelhinho de banheiro? Será que esse sanitário é apenas um representante de vários outros banheiros adaptados por aí? Quem sabe algum leitor seja instigado a conferir o lugar que está sendo ocupado pelo espelho no banheiro adaptado de sua empresa, ou de sua instituição educacional… Se um único espelho for para o seu lugar merecido, já valeu a pena escrever esse texto!
Um espelho fora do lugar pode parecer irrelevante para os leitores que não dão tanta importância à sua aparência, ou que não estão preocupados com ela exatamente agora. Mas, o que dizer da pessoa que está prestes a fazer uma entrevista de emprego, ou esperando uma reunião importante iniciar, ou aguardando o primeiro encontro agendado com um potencial amor… Um espelho deslocado nesses contextos pode ser fortemente detestável. Tanto quanto um espelho alcançável ao olhar, descomplicado, pode ser extremamente proveitoso!
Bom seria se TODOS pudessem alcançar espelhos com os olhos. Mas, isso é utopia. Pessoas com deficiência, ou com nanismo, ou até mesmo as crianças não precisam tanto assim visualizar a representação de suas faces no espelho, né? Ou será que os espelhos em locais inconvenientes não estão ali de modo intencional, para propagar a ideia de que elas não são dignas, nem sequer do seu próprio reflexo?
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