A última pesquisa vinculada no dia 12 deste mês pelo Instituto Datafolha a respeito de um eventual cenário para 2022, apontou a concretização da polarização entre Lula e Bolsonaro. Independentemente da vantagem considerável em favor do petista, o que chama atenção para olhos mais atentos é que o virtual candidato do PDT, Ciro Gomes, até então a figura da esquerda mais proeminente na mídia, perdeu fôlego eleitoral e, mais uma vez, parece não ser capaz de emplacar de maneira sólida sua candidatura.
Curiosamente, Ciro Gomes é um político tão experimentado quanto ilustrado. Apresenta diagnósticos advindos de estudos e análises minuciosas a respeito dos problemas macroeconômicos do país como nenhum outro nome que consta na lista da pesquisa do Datafolha. Em virtude disso, tem o potencial para se apresentar como a terceira via dotada de lucidez e capacidade de aglutinar forças de interesses distintos. Todavia, por uma série de contradições criadas pelo próprio ex-ministro, isso não se traduz na perspectiva do eleitorado.
Creio que por se tratar de uma figura pública com vasta e reconhecida trajetória, além de possuidor de um discurso crível fundamentado pela ciência, sempre buscando alinhamento “com as melhores práticas internacionais”, como o próprio cearense de criação (nascido no interior de São Paulo) faz questão de mencionar, é imperativo efetuar um exercício de possíveis aspectos que afastam, ou não aproximam de modo convicto seu nome ao eleitorado nacional. Me parece que há dois aspectos que são facilmente perceptíveis. Sua relação volátil com as ideias liberais e sua adesão confusa ao nacional-trabalhismo, além de certa incapacidade de compreensão da idiossincrasia do eleitorado brasileiro.
Ciro Gomes e sua confusa relação com o liberalismo
A distinção entre liberalismo político e econômico é artificial. Ambos são aplicação do mesmo conjunto de princípios — de viés filosófico, antropológico e sociológico — a recortes diferentes das relações humanas contemporâneas, mas que, no mundo real, estão profundamente imbricados.
A maneira como se organizam as instituições, leis, poderes e normas de uma sociedade estão vinculadas também ao modo como essa sociedade vai produzir, trocar mercadorias e distribuir riqueza. A estrutura produtiva anda de mãos dadas com o arcabouço jurídico. E ambos derivam, antes de tudo, de uma série de pressupostos, horizontes, de uma narrativa sobre o mundo que é centrada na existência e valor basilar do indivíduo humano, encarado como livre para realizar seus desejos e interagir com outros indivíduos em busca de interesses comuns.
O liberalismo, desta feita, é uma totalidade. E inclui uma noção própria de justiça, de ética etc. Um todo que não admite outra situação senão sua hegemonia completa sobre o tecido social, com a eliminação ou marginalização completa de qualquer outra teoria ou filosofia concorrente.
Qualquer pessoa que jure existir uma distinção rígida, ferrenha, explícita entre liberalismo político e econômico está sendo raso na análise, ou desconhece a respeito do assunto. Se não for desconhecedor, está mentindo por alguma razão, em geral, para enganar com fins propagandísticos.
Ciro Gomes e sua relação com o eleitorado brasileiro
A estimativa da preferência dos eleitores brasileiros aventada por Ciro Gomes é bastante razoável e até provável. De acordo com suas análises, o núcleo duro do eleitorado bolsonarista está entre 12% e 15%. O restante é formado por simpatizantes com uma ou outra pauta. Indo além, de modo muito certeiro e sereno, Ciro não titubeia em afirmar que não há chance, de fato, de um golpe militar bem-sucedido no Brasil. O perigo da aventura destes tempos vem de paramilitares alimentados por fundos e interesses que não se relacionam diretamente ao atual presidente.
Tirando essas e outras análises precisas, convém também apontar alguns equívocos cometidos pelo candidato do PDT.
Ciro Gomes parece não entender sobre o fenômeno do nacional populismo, confundindo-o com o tradicionalismo de Bannon e, pior ainda, com o rentismo globalista. São coisas diferentes, que em alguns casos se tangenciam (nacional populismo e tradicionalismo na Europa, por exemplo; Bannon e rentismo no Brasil), mas que se opõem em outras instâncias. Os nacionais populismos europeus e estadunidense, por exemplo, adotam narrativas antiglobalistas e rechaçam o rentismo, lembrando que Ciro apresentou críticas ferrenhas a Trump e elogios fartos a Biden.
Esses reducionismos tiram o vigor da visão do pedetista e revelam que ele ainda não entendeu muito bem o que se passa no mundo, quais as reais forças que se confrontam, e quais seus possíveis aliados por um projeto soberanista. Será que Ciro Gomes tem mais chances de reindustrializar o Brasil (objetivo central do seu projeto) com Joe Biden no poder da casa branca, por exemplo?
Outro fator preponderante para o fraco desempenho do pedetista é o modo como se utiliza equivocadamente de certos adjetivos. Acusar o lulopetismo de fascista, ao mesmo tempo que diz que Bolsonaro é fascista, chega a ser constrangedor para um sujeito com a capacidade de reter conceitos de forma tão sofisticada. O eleitor ainda que não convicto, mas que nutre simpatia por Lula ou por Bolsonaro, tende a cada vez menos aturar esse uso indevido do linguajar político. Ciro Gomes ao tentar se tornar palatável para ambos os lados, acaba se perdendo em sua própria retórica, uma vez que o mesmo chamou atenção ao criticar duramente o portal de esquerda Brasil 247, justamente por este trazer a afirmação de que todo mundo que é anti-petista é fascista.
Cabe fazer menção também importante ao modo ambíguo pela qual Ciro se relaciona com a pauta moral, em certos momentos se colocando contrário ao “identitarismo”, em outros, abraçando o modelo da militância identitária. Fato é que os elementos morais que fizeram parte das últimas eleições não são parte de uma ”onda de direita”, mas uma democratização do debate político e uma rachadura no encouraçado arcabouço político da classe média. O povo brasileiro não se tornou conservador e religioso de uma hora para outra. Ele sempre foi, e tende a continuar sendo. Trata-se, portanto, de uma reação às investidas do cosmopolitismo, que tem uma tábua de valores completamente distinta da idiossincrasia naturalmente conservadora do brasileiro.
Desta forma, aparentemente o que Ciro Gomes transmite ao eleitorado, e aqui me refiro mais precisamente ao eleitorado de menor escolaridade, é que não adianta ficar apontando o entreguismo de Paulo Guedes e da plutocracia ao mesmo tempo que se coloca ao lado da classe média cosmopolita contra os valores profundos que orientam a visão de mundo das camadas mais populares.
Uma reflexão
A primeira dúvida que naturalmente recai sobre Ciro Gomes é saber se ele é um liberal que flerta com pautas do nacionalismo latino-americano para tentar construir uma sociedade liberal, a tal “Suécia Tropical”; ou se ele é um nacionalista latino-americano que flerta com o discurso liberal por saber que ele é hegemônico na política partidária aceita pelos poderes instituídos.
No primeiro caso, ele é mais uma face do que aí está, inviabilizando a si mesmo como uma terceira via. No segundo caso, ele é um político do qual se pode esperar um compromisso mais profundo e duradouro com o país, que não pode ser abstraída do imaginário dos brasileiros como se significasse apenas ”recursos naturais” e outras miudezas materiais, que são importantes, mas não o principal.
No que concerne ao modo como se relaciona com o eleitorado brasileiro, é preciso construir teorias a partir da realidade, e não deduzi-las a partir de outras teorias ou de esquemas mentais. A esquerda brasileira (Ciro Gomes incluído) desenvolveu a tese de que houve uma revolução conservadora no Brasil, no seio da classe média, causado pelo crescimento das igrejas evangélicas e pela influência do Olavo de Carvalho, e que isso levou à eleição de Bolsonaro. Me parece que cada elemento dessa tese está errado.
Não houve qualquer “revolução conservadora” no Brasil. Os posicionamentos da maioria dos brasileiros sempre foram os mesmos. O que houve nos últimos 20 anos foi a captura do imaginário da elite e da classe média pelo pensamento hegemônico a partir de fontes estrangeiras. Essas camadas da elite e da classe média, como liberais, acreditam que as suas crenças são “naturais”, fruto de algum tipo de “evolução social”. Ao se deparar com um povo que, hoje é anti-aborto, 10 anos atrás era anti-aborto, 50 anos atrás era anti-aborto e 100 anos atrás era anti-aborto, inventou que houve uma “onda conservadora” no Brasil. O que houve foi o exato oposto. Não foi o povo que mudou, foram os partidos políticos de esquerda que mudaram.
Minha interpretação é que um político hábil e instruído como Ciro Gomes precisa assumir convicções e se mostrar com maior clareza para o público. Entretanto, caso de fato não tenha percebido detalhes tão íntimos do eleitorado que pretende seduzir, cabe imediatamente voltar a campo e estabelecer conexões mais íntimas com o mosaico de valores morais de seus compatriotas das camadas mais populares e numerosas, não se restringindo a palestras para universitários de classe média.
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