“Escolhido por critérios técnicos”, “recomendado por especialistas” são exemplos de abordagens que levam o sujeito a não questionar e a aceitar o que está sendo proposto, pois, afinal, a ciência e a tecnologia são objetivas e neutras, se são especialistas então te recomendam sem interesse ou influência alguma. Se foi escolhido por critérios técnicos então é isento, imparcial. Será?
Há um longo debate em torno da possibilidade ou não da ciência se desenvolver unicamente a partir de uma lógica interna, em uma história das ideias científicas para além do contexto histórico e cultural no qual se deram, ou, ainda, de a ciência ser influenciada ou mesmo determinada pelo contexto.
Alguns dirão que essa neutralidade é apenas uma pretensão, que ao escolhermos um objeto de interesses nas pesquisas científicas já o fazemos em relação ao nosso contexto histórico e cultural. Além disso, o que é feito com os resultados da pesquisa pode depender de fatores para além da própria ciência por ela mesma, como no caso dos carros elétricos cuja tecnologia já estaria a muito tempo disponível, mas que ainda não se tornou popular tendo em vista interesses econômicos de petroleiras.
Há sim uma dimensão laboratorial, metodológica, quando o cientista questiona a natureza. E a natureza dará a sua resposta ao experimento independente do meio cultural ou do contexto histórico. Contudo, quais perguntas são feitas para a natureza, o modo de interpretar isso e o que é feito com o resultado pode ser limitado ao contexto histórico e cultural dos pesquisadores.
O que eu quero dizer com essas coisas é que, se elementos para além da própria ciência estão envolvidos no fazer ciência, então o debate pode sempre ser ampliado para a comunidade como um todo, até porque o resultado da ciência e da tecnologia afetam a sociedade como um todo. Em um exemplo extremo podemos citar a bomba atômica. Mas a ciência e a tecnologia afetam os nossos modos de vida e de morte cotidianamente.
Para além de aceitar como se fosse um dever ser feito, ser concretizado algo que tecnicamente seja factível, essa ampliação do debate com a comunidade poderia se dar em perspectivas como em questionamentos sobre os rumos da ciência, sobre os seus limites, sejam éticos, ambientais, ou outros. Contudo, em geral só nos chegam os resultados do fazer científico e com alta frequência as pesquisas acabam sendo compartilhadas com a sociedade apenas por meio de artigos científicos hermeticamente fechados publicados em revistas especializadas que poucos acessam e recheados de termos incompreensíveis a um grande público.
Talvez esteja no momento de reivindicarmos nossa cidadania científica, a possibilidade de participarmos dos debates em torno da ciência e da tecnologia, e não de ficarmos à margem desse segmento de nossa civilização, apenas com os impactos dos rumos da ciência que são decididos sempre por outros.
Percebe-se atualmente o quanto as pessoas se interessam por ciência e o quanto falta de esclarecimento nos debates e na busca por fundamentação para tomarem decisões e posição contra ou a favor sobre vacina, sobre o uso de máscaras, sobre distanciamento social, sobre cloroquina e tal. É assunto nos mais variados ambientes e, inclusive na CPI do Senado que estamos a acompanhar essa semana, vemos com alguma frequência que posicionamentos são abordados sem uma fundamentação consistente, defendidos apenas com desvios de retórica.
Não é falta de informação, é falta de conhecimento. Com um clic temos acesso em minutos a muito mais informações que alguém durante a vida toda na Idade Média conseguiria ter. Mas essas informações não implicam necessariamente conhecimento.
Segundo alguns autores, vivemos em uma sociedade da informação, dando à informação o status que antes era ocupado na sociedade pelo trabalho, ou pelas indústrias. O foco não é mais a fabricação, pelos operários, na indústria, o foco é a prestação de serviços, com a qualificação constante dos profissionais, lidando com informação. Mas mesmo essa qualificação talvez seja em muitos casos mais um treinamento do que uma produção de conhecimento a partir das informações.
Perceba-se nesse contexto sanitário, com qual intensidade as sociedades estão morrendo, independente de idade, de sexo, de credo, de etnia, de filiação partidária, de ideologia, uma opção errada tanto pela ciência quanto pelas políticas públicas pode condenar levas de pessoas à morte até que a gente possa perceber que era apenas uma decisão com fins retóricos, pautada em achismos, não na esfera laboratorial e metodológica.
E se, enquanto sociedade temos dificuldade de entrarmos apropriadamente nesses debates, perdidos em meio a tanta informação e com pouco conhecimento, ficando reféns de argumentos de autoridade, de argumentos tendo em vista não a força do argumento e sim tendo em vista o status de quem é que disse o argumento, parte da solução começa por espaços como esse do jornal Informe Blumenau, no qual podemos colocar em discussão com a comunidade um pouco do fazer acadêmico e científico que profissionalmente produzimos em nossos laboratórios, gabinetes ou salas de aula.
Se conseguirmos avançar no projeto de auxiliar a sociedade no fornecimento do aparato básico para a compreensão dos cenários e para o exercício da cidadania científica, estamos cumprindo com isso um importante papel para que não tenhamos mais uma comunidade refém, que precisa acreditar por não conseguir compreender.
OUÇA O PODCAST COM A COLUNA COMENTADA:
Seja o primeiro a comentar