Por Roberto Henrique Wolter – Mestrando em Educação, Licenciado e pós-graduado em História
Argumentum ad verecundiam. Se você não tem frequentado as aulas de latim, eu posso traduzir. A expressão significa apelo à autoridade. Como eu sei? Bem, a Wikipédia me informou. Provavelmente esta não é a fonte mais recomendada quando se quer convencer ou impressionar alguém. Pois é, acho que consigo melhorar. Vamos lá! Com algum conhecimento em inglês, ou na utilização de dicionários, poderíamos obter informações sobre a expressão em latim consultando outra enciclopédia. Refiro-me à obra editada por William Nicholson (1753-1815) e publicada em 1809, intitulada The British encyclopedia, or, Dictionary of arts and sciences: comprising an accurate and popular view of the present improved state of human knowledge. Ufa! Agora sim! Esta parece ser uma ótima referência.
Buscar as fontes do que lemos tem se tornado essencial no cenário repleto de notícias falsas em que estamos inseridos. Assim é recomendável estar atenta/o às argumentações e suas possíveis validações vinculadas aos textos a que temos contato. Assim, nesta crônica, eu tentarei evidenciar que estamos tão preocupados em procurar argumentos de autoridade sobre determinado assunto, que deixamos de pensar por nós mesmos, cedendo assim aos discursos falaciosos.
Mas o argumento que busca aporte em uma autoridade nem sempre é falacioso. Se assim o fosse, a quase totalidade das pesquisas acadêmicas seria falaciosa. Então quando ocorre a falácia do apelo à autoridade? Acredito que um exemplo auxilie na compreensão do aspecto que busco abordar aqui.
O alemão Martin Heidegger (1889-1976) é reconhecido como um dos mais importantes filósofos do século XX, porém, Heidegger foi filiado ao partido nazista. Munido destes fatos, um argumento falacioso sustentado no apelo à autoridade poderia afirmar que, visto o envolvimento de Heidegger com o nazismo, esta forma de governo seria positiva. Neste sentido, a falácia do apelo à autoridade ocorre quando a justificativa para um argumento está centrada apenas na autoridade, desconsiderando que, conforme o exemplo, embora Heidegger seja uma autoridade na filosofia, suas escolhas políticas não são necessariamente as mais corretas. Portanto, será com a falácia do apelo à autoridade em mente, que analisarei algumas mensagens que recebi nos últimos dias.
Após o massacre na escola Raul Brasil, no dia 13 de março, tive contato com algumas mensagens de WhatsApp, que buscaram na falácia do apelo à autoridade explicações para a atitude brutal dos dois jovens. Seja na figura do padre Fábio de Melo, em Deus ou na Psicologia, apela-se para alguma suposta autoridade acima de nós, meros seres cotidianos. Consideramo-nos incapazes de dizer algo sensível e significativo. E tememos que os nossos pensamentos não sejam compartilhados. Aceitamos o fato de que a mudança não virá de nós.
Voltando ao conteúdo das mensagens, à falácia do apelo à autoridade, junta-se a vontade de enganar e de disciplinar condutas por parte daqueles que as produzem. O padre Fábio de Melo afirmou em suas redes sociais não ser o autor do texto, o qual, entre outras passagens, afirmava que “armas não matam” [sic]. Já o texto que recorre à psicologia para tentar culpabilizar os pais pela delinquência dos filhos é um texto requentado. Uma rápida pesquisa na internet apresenta esse texto sendo compartilhado desde 2016. E este não é o único problema, o texto é carente de validação dentro do discurso científico no qual a psicologia se encontra. Pelo visto, o texto, mesmo pretendendo ser claro e direto, não tem se apresentado como uma contribuição para a compreensão das variáveis da delinquência. Pobres pais, ainda não entenderam. Se não fosse o bastante, o texto pretende iniciar uma revolução paradigmática ao concluir a argumentação psicológica com a seguinte passagem do Livro de Provérbios: “Ensina a criança no caminho em que deve andar, e, ainda quando for velho, não se desviará dele”.
Na minha opinião, a falácia do apelo à autoridade também demonstra a nossa incapacidade de pensar por nós mesmos. Esperamos um discurso bonito, pronto e, se possível, lacrador. Melhor ainda se confirmar o nosso posicionamento prévio. A questão é que, após o compartilhamento desses textos, entramos em estado letárgico. Não há ação. A emoção se esvai e fica a aparência de um dever cumprido. Perdemos assim excelentes oportunidades para refletir sobre as contradições e os paradoxos que constituem as sociedades contemporâneas, nas quais estamos inseridos.
Entendo que, se dois garotos invadem uma escola e, após matarem oitos pessoas, ferirem outras, se suicidam, é evidente que não será uma mensagem que irá restabelecer o sentido das coisas. Talvez a reflexão crítica sobre as causas do massacre seja uma opção válida no sentido de evitar novos acontecimentos como o de Suzano (SP). Ao contrário, a reflexão não será produtiva se partir de um discurso multiuso, falacioso e que mente a autoria. Muito menos se for uma reflexão que aponte para as causas imediatas, no caso, o portão que estava aberto. Como quando vamos a uma farmácia e compramos um remédio, e nos esquecemos que, até a chegada deste remédio à farmácia, foi necessário o envolvimento de dezenas de pessoas. Estejamos certos de que, quando a violência se torna uma pandemia, a compreensão do processo é ainda mais complexa.
Na grande farmácia que virou o WhatsApp, consumimos pílulas de compaixão imersos no caos pós-moderno, ansiosos por mensagens que não nos deixem pensar. A autoridade nos liberta! Mas será essa a única constatação? Certamente não. Podemos mudar as nossas perspectivas. Não que eu vá proclamar a extinção da autoridade. Mas farei apologia ao fim do culto à (pseudo) autoridade aligeirada do generalista de plantão. Enquanto pensarmos que apenas é digno de atenção o que é dito por aqueles que ocupam posições consideradas socialmente elevadas, estaremos terceirizando o ato de pensar.
Como seres pensantes, temos nossos referenciais, nossas leituras e nossos valores. Dialogar com autores notáveis em suas áreas do saber é estar apto a fazer escolhas. Ser apenas um reprodutor do que uma suposta autoridade no assunto diz, é renegar a própria individualidade. O exercício de pensar por si mesmo é difícil. Mas vale a tentativa.
Para finalizar, acredito que o pensamento do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) dialoga com a minha proposta, e a sua autoridade é bem-vinda. No livro A arte de escrever, Schopenhauer comenta que “aqueles que são ávidos e impacientes por resolver questões polêmicas citando autoridades realmente se satisfazem quando conseguem colocar a compreensão e o insight de outrem no campo – no lugar de seus próprios, que são precários. Seu número é legionário. Pois, como Sêneca diz, todos os homens preferem acreditar a exercitar o julgamento – unus quisquem avultcreder equam judicare”.
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