Opinião: a arte em um Brasil medieval

Imagem: reprodução

Essa semana tivemos veiculada na imprensa a notícia de que a Fundação Nacional de Artes (Funarte) reprovou um pedido de apoio a um Festival de Jazz com um parecer técnico que apresentava uma visão de mundo bem retratada na frase atribuída ao compositor de música clássica Bach: “o objetivo e finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma”.

Antes de mais nada, não é a minha intenção defender ou criticar a Lei Rouanet. A minha abordagem nesse rápido artigo de jornal segue em outra direção e deixa esse debate em torno da Lei Rouanet pra outra oportunidade.

Primeiramente, já destaquei aqui nesse mesmo espaço em outras semanas que a neutralidade e a objetividade que se quer passar ao usar expressões como a de que o parecer é “técnico”, de que a pessoa foi escolhida por critérios “técnicos”, pode não colar mais nos debates científicos, uma vez que a própria neutralidade e a objetividade inerente ao fazer técnico e científico foram em alguma medida relativizadas pela história, pela sociologia e pela filosofia. Assim, não irei criticar o parecer pela ausência de neutralidade e de objetividade. Irei criticar pela falta de conhecimento sobre a área que está sendo objeto de posicionamento.

A compreensão de que a música possui por finalidade a glória de Deus é uma concepção comum em especial na Idade Média. Durante tal período, se tem inclusive um debate sobre qual parte da música remete a Deus e qual parte afasta de Deus, a letra ou o instrumental? Agostinho, filósofo e santo da Igreja Católica, chega a mencionar que quando ele presta demais atenção no instrumental, ele sente que pecou.

Na Idade Média se tem também debates sobre quais notas musicais despertam quais sentimentos específicos no ouvinte, alegria, tristeza, tensão, raiva… quais notas combinam com quais palavras a serem cantadas quando essas notas são tocadas, tudo para saber quais músicas podem ser executadas (para nos aproximar de Deus) e quais devem ser proibidas. Isso se desenrola até Lutero, que, superando o moralismo ao se tratar de música por antecessores, defende que mesmo a harmonia dos sons na música aproxima de Deus, não apenas a letra em oração.

E a harmonia dos sons, muito antes mesmo da Idade Média, já era um fator admirado pelos pitagóricos, aqueles filósofos gregos que viveram antes de Sócrates e que inventaram teoremas matemáticos. Esses pensadores viam a harmonia dos planetas girando em uma constante, a harmonia da natureza, a harmonia entre a alma e o corpo, e, diante disso tudo, a música propriamente dita seria apenas uma manifestação dessa harmonia. Além disso, a música poderia nos ajudar a equilibrar a harmonia de nosso estado de ânimo.

De qualquer modo, tanto para os gregos quanto para os medievais, a música executada era coisa para escravo, tendo em vista que tudo aquilo que era prático, tinha pouco valor. O homem livre estudava a música teórica.

Em boa parte da Idade Média também, algo para ser considerado belo precisava possuir requisitos associados a Deus, como a proporção, a perfeição, essas coisas, para remeter a Deus, para lembrar do Criador.

Após as duas grandes guerras, a música foi abordada em termos de produto destinado ao comércio. Não importaria mais o estado de ânimo no qual o compositor estivesse, estado de ânimo esse que dedilhando um violão encontrava um correspondente musical que expressava de algum modo o que ele estava sentindo naquele momento. Agora, se havia demanda para comprar um determinado estilo de música, o compositor faria essa música pensando no público, não em seu estado de ânimo. Produto, comércio, lucro.

Enfim, os debates sobre a música e suas funções possíveis remontam a uma história riquíssima, incluindo querelas. O debate sobre o que é arte, ou, ainda, sobre o que é belo, igualmente são debates monstruosos na amplitude e nos argumentos, sendo a época Medieval apenas uma parte.

Seria salutar que esses debates fossem populares, mas não o são. Contudo, das pessoas que cuidam em nível de país da cultura, ignorar essas reflexões pode ser um problema. Primeiro, por terem ficado restritos a apenas uma noção possível. Segundo, tendo em vista que não vivemos em uma teocracia, ou seja, o poder político não é o poder religioso. Longe de querer desconsiderar a religiosidade de nossa população, mas é preciso ficar claro que as decisões políticas e legais não se misturam com dogmas religiosos.

Concordo com Kant no sentido de que, durante a apreciação da beleza, é independente a cultura, o conhecimento prévio, o conceito de quem está a apreciar esteticamente. O momento no qual se dá a apreciação estética é um estado de ânimo que opera sobre uma estrutura básica de nosso aparato mental. A arte pode ter pressupostos políticos? Pode. Mas enquanto se está a apreciar esteticamente, isso de nada interessa. A apreciação estética é um momento anterior nos processos mentais ao momento de compreensão de algo, de conhecimento de algo, requisitos para entender o pressuposto político que porventura a arte tenha. Querer “passar uma mensagem” invalida a arte? Não. Mas, durante a apreciação da arte, não interessa tal possível “mensagem”.

Mas o que aconteceu nesse caso? O pessoal do “parecer técnico” investigou e localizou postagens contra o fascismo de algum modo associado ao festival ou seus proponentes. Procurou-se modos de rejeitar o projeto e, para isso, se optou por uma abordagem muito comum na Idade Média de associar a música a Deus, e, a partir disso, se disse que aquilo não era arte. Veja bem, o festival estava associado com uma “mensagem”, não o jazz que ali seria tocado. A música permanecia a mesma. Mas foi tudo “contaminado”, na visão do parecerista que rejeitou o projeto, que conclui com a consideração de que “a candidatura deste que se postulou a Arte ao concorrer à categoria de Projeto Cultural, apresenta-se desconfigurada e sem acepção a esse atributo”, ou seja, não era arte.

Vários pontos poderiam aqui ser colocados em debate. Pontos como, por exemplo: o governo veste a carapuça e pensa que algo antifascista é anti o governo, o que é curioso. Ou, ainda, seria de acordo com os princípios democráticos auxílio a projetos culturais que trouxessem mensagens concomitantes? Quem escolhe quais mensagens podem ser apoiadas? A favor de religiosidade pode, contra o fascismo não pode? Qual critério?

Se poderia sugerir que, assim como quem quer fazer um festival de jazz contra o fascismo que banque tal projeto por conta própria, quem quer fazer um festival de música gospel em louvor a Deus que banque igualmente tal projeto. Mas não é isso o que vemos, é a própria concepção do que é arte que está em jogo, e de um modo que pode colocar em risco inclusive os princípios da administração pública.

Saliento o que isso representa: é o setor responsável pela cultura de um país dizendo o que é e o que não é a arte a partir unicamente de uma concepção medieval. Mas esse reducionismo é reflexo de uma sociedade que não tem colocado em pauta os debates em torno de estética e da arte, simplesmente consumindo com pipoca o que dizem ser arte.

Um exemplo disso é que em alguns dos livros didáticos mais usados no ensino médio na área de filosofia, o debate sobre estética e arte ocupa a última seção do último capítulo. Ou seja, se não der tempo de trabalhar com os alunos, deixa-se pra lá. E, com isso, sem refletir sobre estética, nossos alunos ficam reféns de padrões de beleza e concepções de arte as mais duvidosas, reféns de concepções de beleza construídas pelo mercado, concepções de arte construídos por quem quer vender algo com esse rótulo. O governo que estamos tendo é reflexo do que fazemos na base. Como o Brasil nos parece? Nesse caso, marcadamente Medieval.

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