No meio do pântano, pode-se ver uma magnífica filha da mãe-natureza: a flor de lotus. É uma belíssima flor que nasce no meio da água lodosa, fétida, em razão de plantas decompostas. A imagem da flor foi usada, faz bom tempo, para expressar minha crença de que no meio do caos há uma réstia de esperança. A frase de tempos idos era: “A política chegou ao fundo do poço em matéria de moral. Mas não morreu a esperança de nascer uma flor no pântano”. O saudoso Saulo Ramos, jurista e sábio, e também um incréu, pinçou a alegoria em seu livro Código da Vida para atribuí-la aos “puros, os poetas, os idealistas”, referindo-se a este escriba, não sem fazer votos para que “eles tenham razão” na pregação.
Ainda conservo essa imagem da política; é possível distinguir no turbilhão de negócios escusos, interesses vis, emboscadas, balcão de recompensas, enfim, de coisas escabrosas, uma majestosa flor de lotus.
Mesmo depois de mensalões, descobertas feitas pela Operação Lava-Jato, dinheiro escondido, mutretas de todos os tipos, milhares de mortos tragados pela Covid-19, sob a política de terra arrasada desenvolvida por insanos, continuo a ver no meio do lamaçal pilares de uma ética em construção no edifício da política.
Vejo CPIs no Legislativo, discursos de cobrança, órgãos de controle sendo acionados, Judiciário passando pelo “corredor polonês” da sociedade e Executivo obrigado a prestar contas de suas ações. É claro que certa dose de espetacularização impregna os corpos governativos, mas, depois de espremer as massas impuras, emerge um barril de vitamina ética, que revigora o nosso sistema democrático.
A bandeira ética que começa a ser desfraldada tem sido uma tendência não apenas brasileira, mas internacional, deslocando eixos tradicionais de poder para a sociedade. Aqui e alhures, grupos e setores cobram providências de governos e parlamentos, determinados a exigir medidas para seu bem-estar.
Que fatores que estão por trás dessa onda? Em primeiro lugar, o despertar da racionalidade. O Brasil descobre que o ciclo da emoção está cedendo espaço ao ciclo da razão. A sociedade toma consciência de sua força, da capacidade que tem para mudar, pressionar e agir.
O crescimento das cidades e, por consequência, as crescentes demandas sociais; o surto vertiginoso do discurso crítico, revigorado por pautas investigativas e denunciadoras; o sentimento de impunidade que gera, por todos os lados, movimentos de revolta e indignação; e, sobretudo, a organicidade social, que aparece na multiplicação das entidades intermediárias, hoje poderoso rolo compressor sobre o poder público – formam, por assim dizer, a base do processo de mudanças em curso.
O resultado dessa combinação é positivo. Uma sociedade pluralista propicia maior distribuição de poder, maior divisão de poder abre caminhos para a democratização social e, por conseguinte, a democratização da sociedade civil se expande e amplifica a democracia política. No Brasil, estamos caminhando firmes nessa direção e a prova mais eloquente da tendência se verifica na imensa rede de centros de poder instituídos em todos os âmbitos e níveis.
A formação desses novos centros, tanto no meio quanto nas margens da sociedade, tem por motivo a decepção do povo com seus representantes. Os partidos políticos constituem um ente amalgamado, massa pasteurizada e incolor. Como tenho lembrado, essa movimentação ocorre em nível mundial. As doutrinas se aproximam e se fundem. Observa-se um desempenho menos vigoroso dos aderentes do universo partidário, até porque as lutas políticas e sociais do passado – travadas sob o manto da clivagem ideológica – perderam sentido. A luta de classes dá adeus.
O oposicionismo que se exerce na atualidade se dá menos em função de uma visão ideológica de mundo e mais em função de projetos circunstanciais de poder, centrados na pragmática e inspirados nas vontades e expectativas dos novos polos de pressão da sociedade.
O processo político, no Brasil, se torna cada vez mais uma questão distrital, espacial. Cada ente federativo quer abocanhar uma fatia maior do bolo tributário.
Uma força ascendente, de baixo para cima e de fora para dentro, se desenvolve para reforçar a democracia representativa, inoculando-a com valores da democracia direta, entre os quais as manifestações e decisões dos cidadãos reunidos em assembleias de suas entidades, contrapondo-se a uma força descendente, de cima para baixo, representada pelas instituições do Estado, a partir dos três Poderes.
São evidentes os sinais de que o Brasil levanta a bandeira ética. Mas para entender até que ponto ela poderá ser erguida, há de se observar a dinâmica dos conjuntos sociais, dos eventos em curso nos cenários político, social e econômico. A ética trata das coisas do bem, do ideal da felicidade, das fontes de justiça, dos valores da amizade, da solidariedade e da dignidade. O esforço ético tem como eixo central a sociedade convivial, uma comunidade a serviço da dignidade humana e não de maior produção. Uma sociedade que lute para diminuir a distância entre o Estado e a Nação.
Aventureiros e oportunistas não terão tantas oportunidades como as que se apresentam na paisagem ainda pantanosa, onde começam a brotar flores de lotus.
Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político
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