Opinião: a invasão a Ucrânia

Foto: AFP/Reprodução

Nota prévia:

A agressão à soberania da Ucrânia permite várias interpretações, a começar pela vitimação e morte de pessoas inocentes. Nada é tão importante e deveria encerrar discussões sobre o lado mal. Some-se a violação à soberania nacional. Daí, relativizar com o agressor torna-se insensato. Me impressiona que, conforme os circuitos relacionais de cada um, pessoas que, por certo, definiram o significado de ética ao longo da vida, apresentem argumentos reticentes quanto a de quem seja a culpa. Tergiversar sobre isso é um desrespeito ao povo ucraniano e a seus descendentes catarinenses, paranaenses e brasileiros mais. A culpa é do agressor e ponto final. Queriam um genocida? Aí está um.

Então, com repúdio ao invasor e solidariedade eterna aos ucranianos, vamos à questão de fundo civilizatório: trata-se de definir o que é o Ocidente, em comparação com outros troncos civilizatórios e isso ajuda a explicar a iniciativa de Putin. É preciso encarar o fato de que as instituições ocidentais, sejam políticas, econômicas ou morais, são superiores, porque, ao longo do tempo, permitiram a autocrítica e geraram melhores resultados aos seres humanos.

Ditador, Putin invadiu a Ucrânia porque não admite que o vizinho se filie à OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte. Este organismo de poder militar representa o acordo de não agressão e defesa mútua entre os atuais 30 países membros. Independente das justificativas do agressor, o problema é que ele viola o princípio da soberania de outro país. O governo da Ucrânia crê que estaria mais seguro na OTAN, assim como a Polônia e outros países da Europa oriental.

Além do que é na prática, a OTAN simboliza a civilização ocidental. Os símbolos são seus valores fundantes, quais sejam, liberdade, igualdade e fraternidade. Desenvolvidos ao longo de séculos, representam aspirações universais, conquanto tenha sido no Ocidente onde mais de expandiram. O culto a esses valores gerou ambientes que atraem proletários e elites de outros grupos civilizatórios, do que os imigrantes são o exemplo mais explícito.

Em 1989, o cientista político nipo-americano Francis Fukuyama publicou “O fim da história …”. A tese geral é de que, no pós-guerra fria, viveríamos o apogeu dos direitos humanos, da democracia e do capitalismo. Com isso, o resto do Mundo copiaria o Ocidente. Anos depois, Samuel Huntington, cientista político norte-americano, lançou “Choque de civilizações”. Em resposta a Fukuyama, advertia que o Mundo simplesmente voltaria ao lugar de sempre e que as novas guerras seriam culturais. Anos depois, as torres gêmeas caíram.

Dois livros que não se anulam entre si, ao contrário, ambos ressaltam a força das instituições ocidentais. Vinculadas por um curso evolutivo, geraram dois produtos institucionais notáveis, quais sejam, o Estado de bem-estar e de direitos e o livre mercado. Nem o primeiro é tão justo, nem o segundo tão livre, mas melhoraram a vida do proletariado interno. Por causa do aperfeiçoamento dessas instituições, o Ocidente atrai muito mais o proletariado externo e isso deixa governos autoritários e corruptos enciumados.

Putin não cansa de bradar que mentem a OTAN, a Ucrânia, a imprensa, os políticos, enfim, “o Ocidente mente”. Obviamente, o governo russo também mente. A questão aqui não é a de quem fala a verdade e quem mente. A questão é que as mentiras do Ocidente são mais sofisticadas e sedutoras. No livro “O dossiê de Odessa” de Frederick Forsyth –que originou filme homônimo de 1974, um sobrevivente ucraniano do Holocausto dizia que, se numa guerra pudesse escolher entre as armas, que lhe dessem a palavra.

Isso é o Ocidente. Os compromissos históricos assumidos com a liberdade, a igualdade e a fraternidade geraram muito mais conhecimento, diversidade opinativa e busca irrestrita da compreensão e interpretação livre dos fenômenos. Com isso vieram as instituições políticas que temos, além da filosofia e da ciência. Ao contrário de outras civilizações, a liberdade de pensamento permitiu que hipóteses, verdades e interpretações diversas e sofisticadas viessem à tona.

A autocrítica nunca se desenvolveu tanto quanto nas nações do Ocidente. Na filosofia da história, por exemplo, Oswald Spengler e Arnold Toynbee apontaram os fatores de decadência das civilizações e que coincidiriam com as condições do Ocidente no século XX. Uma parte da tese de Toynbee sugeria que os impérios caiam quando o proletariado interno insatisfeito corroía por dentro – se consideramos a babel dos fanáticos nas redes sociais, isso pode ser um sintoma de decadência, sim.

Não obstante, é incrível como, autocríticos que foram, o alemão Spengler e o inglês Toynbee identificaram as causas da queda das civilizações. Mas é justamente a autocrítica, filha pródiga da liberdade no curso evolutivo ocidental, que nos permitiu – até hoje – quebrar o determinismo da história. A grande contribuição da Filosofia da História nunca foi a de prever o futuro, mas de autocrítica a corrigir erros. Cem anos após os anúncios de que o Ocidente “já era”, o Ocidente continua sendo o melhor dos mundos.

Não vislumbro evolução na ausência da liberdade. Ambientes autoritários restringem a busca pelo conhecimento, principalmente o humanístico. Impedem a existência salutar da autocrítica, exaltam a bajulação e levam ao nacionalismo mais tosco e ao obscurantismo religioso. Governos autoritários entorpecem a mente e obscurecem a visão de si mesmo, punindo a crítica e ignorando os alertas. Geram fanáticos e destroem a confiança e a ajuda mútuas, sem o que não há império que resista. Este será o fim de Putin, para que não seja o da Rússia.

É verdade que criamos nossos próprios monstros e democracia sem regras é mal presságio. Putin o percebe astutamente quando discutimos a validade ou não de pronomes neutros, da terra plana, da dupla incompreensão sobre o meio ambiente, do “meu corpo, minhas regras” etc. O que ele e muitos de nós, no entanto, ignoram, é que o Ocidente produz e reproduz, com a liberdade que nos é peculiar, a autocrítica. É isso que os governos autoritários não têm.

Putin ainda causará mais estragos, porque tem armas e sua mentalidade é a mesma dos czares, herdada pelos chefes comunistas que o educaram. Por essas e outras, a Rússia tem seu próprio proletariado interno insatisfeito. São pessoas de todas as idades, mas, principalmente, jovens inteligentes e aspirantes às liberdades que tornam o Ocidente mais sedutor. E nem falemos de economia, cujos interesses prevaleceram na geopolítica dominante nas últimas décadas, não sem muita lábia.

O governo Russo tem armas suficientes para aniquilar o Planeta, a OTAN também. Se um dos lados as usar, o outro lado as usará, e será o fim. É o que ninguém quer e evita-lo já não depende de armas, mas de palavras, essas que utilizamos para fazer a autocrítica, usar de diplomacia e, através delas, expressar o valor da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Então, como dizia o personagem ucraniano de Forsyth, “se numa guerra eu puder escolher entre as armas, me dá a palavra”. É algo que o Ocidente soube cultivar melhor, inclusive para criar mentiras mais sofisticadas.

2 Comments

  1. Para superarmos nossa visão OCIDENTOCENTRISTA recomendo o livro do Oliver Stuenkel O MUNDO PÓS-OCIDENTAL, assim vamos deixar a arrogância, a empafia, a alienação e a ilusão de lado e vamos olhar para a realidade além de nossas bolhas, parar com a burrice de achar que todos os não ocidentais são piores , são bárbaros e precisam ser ensinados e contidos!

  2. Genocida por Genocida…o. Putin pode andar de mãos dadas com Jair Bolsonaro….ou já se esqueceram dos mais de 600 mil mortos da covid pelo DESCASO deste governo?

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