Com a aproximação do Natal e do Ano Novo, momento em que a nossa atenção se volta para as celebrações e confraternizações, uma preocupação obstinada se torna o centro das atenções da comunidade teuto-brasileira. É a tradição da weihnachtsputz, mais conhecida como faxina de Natal. Além das preparações costumeiras, com os enfeites natalinos e compra de presentes, quem convive com esta comunidade e a observa com atenção, deve ter percebido o quanto a faxina de Natal tem importância para ela. A weihnachtsputz é uma tradição de origem religiosa que foi trazida da Alemanha pelos imigrantes e que é mantida até o presente pelos seus descendentes. Sua prática está relacionada à organização física da casa para receber familiares e amigos e à preparação espiritual de purificação para as celebrações natalinas.
Particularmente, nunca tinha ouvido a expressão faxina de Natal até pisar em solo catarinense. Não saberia dizer se a tradição é levada tão a sério pelos teuto-brasileiros do Paraná, do Rio Grande do Sul ou de outras regiões. O que posso afirmar é que em Santa Catarina, essa tradição é encarada com muita seriedade. É verdade que essa prática pode ser observada em outras partes do país e por pessoas de outras origens, porém, penso que não seja de forma tão meticulosa, como praticada pelos teuto-brasileiros. Quando escrevia esse artigo, avistei pela varanda um homem em cima de uma casa lavando cuidadosamente o telhado. Situação bem comum na região, mas que pareceria extravagante para pessoas não locais.
A relação entre limpeza física e pureza moral é um tema que permeia diversas tradições religiosas e filosóficas, refletindo a interconexão entre o estado físico e o estado espiritual do ser humano. A limpeza física é frequentemente vista como um reflexo da pureza moral, e vice-versa. Como se trata de uma tradição natalina, é provável que além do significado acima mencionado, os praticantes da weihnachtsputz adicionem mais sentidos relacionados à esperança, renovação e arrependimento. Ou seja, o Natal seria o ponto culminante, momento de reafirmação e celebração de um estilo de vida marcado por estas crenças e valores.
O problema é que as tradições não permanecem com um único significado e estão sujeitas receber múltiplos significados ao longo do tempo. Outro fator importante, é entender que há uma diferença significativa entre aquilo que fazemos, a ação praticada e o significado que os outros implicados atribuem a essa ação. Neste sentido, deveríamos nos perguntar: qual o sentido os adeptos da tradição da faxina de Natal atribuem a ela? Qual o espírito, ou melhor, quais as disposições estão presentes naqueles que executam as rotinas de organização e limpeza no dia a dia? O que representam as rotinas de organização e limpeza para as pessoas indiretamente envolvidas?
Pense nos casais que vivem em conflito constante porque os maridos ousam profanar o “templo da limpeza” de suas esposas com seus rastros pecaminosos. Maridos que não valorizam a organização feita pelas esposas e ainda acham absurdo terem que participar da arrumação doméstica. Reflita sobre as relações adoecidas entre mães e filhos pelo fato destes não terem seguido os padrões de limpeza ensinados por suas mães. Pessoas que vivem em infindáveis disputas e acusações por objetos que sumiram ou por causa de filigranas sobre a posição e o alinhamento dos utensílios que utilizam no dia a dia. Considere as avós com suas casas impecavelmente arrumadas em que os netinhos são obrigados a ficarem imóveis porque não podem tocar em nada. Estas e outras cenas do cotidiano que poderiam aqui ser descritas ensejam a reflexão sobre a realidade de que os sentidos e as disposições oficialmente declarados não sejam aqueles que de fato orientam as ações concretas nas interações do dia a dia.
Talvez não seja mera coincidência que o número de pessoas acometidas por culpa, depressão e ansiedade a nossa volta vem aumentando significativamente. Pessoas que, entre outros fatores, chegaram a essa condição por causa de ambientes eivados de conflitos, acusações, falta de respeito e pobreza de afeto. O fardo pesado do sentimento de culpa foi o responsável pelo trágico fim de Lady Macbeth na trama escrita por William Shakespeare (1564 – 1616). Ironicamente, os rituais de limpeza de Lady Macbeth são descritos como tentativas de eliminar sua culpa por atos de maldade praticados. Lady Macbeth busca inutilmente, pela lavagem das mãos, recompor a pureza perdida. Recentemente, uma abordagem terapêutica psicossociológica chamou a atenção para a relação existente entre saúde mental e escolhas morais.
Penso que a faxina de Natal é apenas o corolário de uma cultura, de um estilo de vida que prima em produzir espaços muito bem limpos e organizados, porém, estes mesmos espaços estão se tornando ambientes patogênicos (que causa doença) para as interações interpessoais. Trata-se de uma cultura que tem valorizado a estética e a manutenção da ordem em detrimento das experiências afetivas, do acolhimento e dos bons momentos compartilhados. O alto grau de exigência e o perfeccionismo constroem o ambiente altamente competitivo ao invés de cooperativo.
Não há ritual de limpeza que seja capaz de apaziguar uma consciência atormentada pela culpa ou por escolhas morais malfeitas. Talvez seja o momento de repensar as tradições, o que elas representam e, principalmente, como elas influenciam o modo como tratamos as pessoas no cotidiano. É hora de recalibrar o peso da importância que damos às pessoas do nosso convívio e o peso e os sentidos atribuídos à organização das coisas. É importante prestar mais atenção em como as pessoas se sentem em relação às exigências e padrões rígidos que são impostos a elas. Por último, é necessário empreender esforço para construir relacionamentos saudáveis, com potencial terapêutico. Priorizar as pessoas e seu bem-estar em detrimento de qualquer ideal de organização. Pois, em última análise, toda organização e limpeza só atinge o seu propósito legitimo quando contribui para que as pessoas vivam de forma mais saudável e harmônica.
Alexandre De Paula Amorim, antropólogo, teólogo e graduando em psicologia
Fui criada dessa forma desde criança. Casei tive que continuar a “tradição” de limpeza geral de natal.Hoje em dia não preciso mais passar esse sofrimento de uma data só no ano pq meus filhos estão adultos e não imputei neles essa tradição. Mas aqui em Blumenau ainda é muito “forte” essa tradição de limpeza de natal. Até por que a minha geração 50/60 ainda são os que dão continuidade a isso! Estão em toda a cidade os exemplos disso! Como você citou no seu texto que eu achei perfeito!! Parabéns 👏👏 Então sim aqui em Blumenau existe e é forte ainda essa tradição de limpeza de natal! Não concordo. Penso como você! Não adianta limpar o “físico” para mostrar que está limpo e arrumado por fora se o emocional está em pedaços por dentro!! E muitos não aceitam ouvir isso. Ficam profundamente ofendidos quando questionados a respeito disso. Não aceitam ajuda profissional por que não “estão doentes”E assim vai seguindo a tradição de limpeza de natal por fora e a “sujeira” por dentro só vai aumentando! Natal todos se perdoam Todos querendo ajudar alguém que esteja precisando. Brinquedos e doces para as crianças necessitadas. Isso tudo são regras do natal para a grande maioria das pessoas. Mas ao apagarem as luzes dos pisca piscas dos pinheiros de natal a magia do “perdão” do fazer o bem se “apagam juntos… Feliz Natal para você e sua família também 🙏 Feliz natal Blumenauenses🙏
Rose, agradeço profundamente pelo seu comentário tão reflexivo e sincero. É inspirador saber que você compartilha da mesma visão sobre a tradição de limpeza de Natal e suas implicações emocionais. Sua experiência, especialmente em Blumenau, destaca como essas tradições podem ser persistentes e, muitas vezes, pesadas. Desejo a você e sua família um Natal marcado pelo espírito da inocência sonhadora preconizada pelo Menino Jesus.
Excelente texto.Concordo exatamente com tudo. Parabéns, gostei muito da reflexão!
Obrigado, Cristina 🙏🏾
Sou historiador por instinto e curiosidade, empírico. Mas isso me remete a uma situação que liga à Mt 23:27. Uma das coisas que chama atenção ao viajar pelo vale europeu em Santa Catarina, é a beleza dos jardins nas casas ao longo do caminho, e sempre me perguntei, como será por dentro?
A Rose, em seu desabafo, vem corroborar com minha já pregressa desconfiança. No entanto, é conhecido o contrário, casas higienicamente saudáveis em seus aspectos físicos e emocionais. Eu mesmo conheço algumas dessas famílias.