Opinião | A vitória nula de Mélenchon

Foto: reprodução

Finalmente as eleições na segunda economia da UE deram o resultado esperado, confirmando o colapso do modelo globalista e aumentando o desespero dos líderes da indústria. Apesar de sua vitória no primeiro turno, o Reagrupamento Nacional (RN) de Le Pen perdeu o primeiro lugar para a aliança entre o macronismo e a esquerda, que ocuparam os dois primeiros lugares. Esses grupos podem chegar a um consenso sobre a próxima nomeação do primeiro-ministro.

Macron ficou irritado e desiludido com os resultados das eleições para o Parlamento Europeu, então ele decidiu fazer uma coisa arriscada e convocar eleições antecipadas. As eleições demonstraram o esperado: os franceses estão cansados de Macron e de suas políticas, algo que já é velho e que colheu a reprovação generalizada pelos confinamentos durante a pandemia.

Os problemas não resolvidos, a imigração, os rendimentos baixos para os padrões locais, juntamente com o alinhamento com a OTAN, explodiram certamente com a posição do presidente francês de enviar tropas para a Ucrânia. O risco que essa ação envolve é simplesmente que a França seja arrastada para uma guerra com a maior potência nuclear do mundo, e isso é feito em troca de, simplesmente, nada proveitoso para o país.

A propaganda insiste em considerar a guerra como uma luta épica pela liberdade ou democracia, não convence os franceses, e poucos estão dispostos a morrer por esses argumentos tão pouco críveis. Por isso, a votação não deve surpreender em seus resultados e apenas ratifica um rumo de cansaço.

A Frente Nacional, agora renomeada como Reagrupamento Nacional, alcançou no primeiro turno o primeiro lugar e deixou em segundo a coalizão da esquerda globalista. Os candidatos de Macron ficaram em terceiro lugar, algo que se reverteu no segundo turno com a alquimia eleitoral, mas isso não muda a essência do problema, tendo em conta que os candidatos de Bardella e Le Pen dobraram os assentos que tinham até então. Le Pen mostrou-se calma sabendo que isso ia acontecer, mas que a colocava em uma posição importante para o futuro.

Marine Le Pen é a candidata dos sonhos para derrubar um sistema injusto?

Seguramente não, ela é uma política profissional que somente propõe um retrocesso, onde as épocas eram melhores para os franceses.
Embora suas propostas não abordem soluções para os problemas que virão, ao menos dificultam a escalada para uma guerra nuclear e também freiam o avanço do globalismo cultural, que busca a “desconstrução”, ou seja, a destruição dos valores históricos.

Isso é o que desencadeou o pânico entre as elites globalistas, que estão forçando uma grande coalizão contra o RN. O curioso é que essa mesma coalizão inclui frentes de esquerda que se apresentam como antisistema, atacando Macron. No entanto, diante da urgência, os antisistema autodefinidos decidiram votar nos candidatos do sistema, ou seja, em Macron. Um mundo de fumaça e espelhos onde a realidade se mostra tal como é quando os tempos são urgentes, é indispensável unir as diferentes opções do sistema para enfrentar a ameaça da Reunião Nacional aos seus interesses.

Essa situação acaba então por definir uma espécie de todos contra Le Pen, exceto a “ultraesquerda” anticapitalista. É claro, então, que há uma grande confusão sob o mantra de esquerda vs. direita, que permite a disputa, então, entre os modelos globalistas e os soberanistas, embora sejam estes mesmos injustos socialmente.

Precisamente por isso não há verdadeiras opções revolucionárias, são apenas opções cosméticas.

O que incomoda é que esses setores emergentes desafiam a cultura globalista no campo dos valores, necessários para a criação do novo modelo de relações sociais em andamento a nível global. E o fazem a partir de uma posição complexa, dado que tanto Melenchon quanto Bardella definiram que estão contra confrontar a Rússia e buscam outras soluções que não sejam o extermínio de boa parte da humanidade, como propõem os falcões do globalismo.

Isso tem várias razões, em primeiro lugar, a França, estranhamente com Macron, decidiu ser o principal apoiador da ordem mundial globalista que desafia a Rússia e seus aliados.

A França, sendo o único possuidor de armas nucleares na União Europeia, acredita que pode ameaçar o Kremlin, prometendo que seu “escudo nuclear” é suficiente para lhe dar um status semelhante ao russo.

Macron no passado promoveu a ideia de criar um exército europeu independente dos Estados Unidos e da OTAN, algo que não teve passos significativos, mas que denota as intenções do francês.

Tudo isso levou os franceses a optarem por duas opções contrárias à posição intervencionista de Macron, que em algumas ocasiões mostra um ego que o faz buscar ser um novo Napoleão. É, no mínimo, estranho que a imprensa não preste atenção ao fato do repúdio absolutamente majoritário dos franceses contra as políticas do francês, mas sim se escandalize com a possibilidade de que Le Pen o acabe condicionando em suas posições de participar em uma guerra contra a Rússia.

“Minhas decisões e minhas ações são ditadas pelos interesses da França. A Rússia não desaparecerá, não será apagada do mapa. Existe e devemos levá-la em consideração… O mundo é o que é e não o que gostaríamos que fosse. Como político, tenho o dever de dizer a verdade aos franceses, mesmo que eles não gostem da verdade. Apoiamos a Ucrânia, condenamos a Rússia… Mas também traçamos linhas vermelhas e o fizemos no interesse da França”.

“Não queremos que a Ucrânia faça parte da UE, não queremos que a Ucrânia se torne membro da OTAN, não queremos compartilhar nossas armas nucleares com o resto da Europa e somos contra enviar nossas tropas para uma guerra que, devo lembrá-los agora, não concerne à França. Fiquei surpreso com a leveza com que Emmanuel Macron, com um copo de uísque na mão, disse a um cantor que enviaria tropas…”

Marine Le Pen suavizou seu discurso que simpatizava com Putin, renovou sua retórica e se firmou na defesa dos valores tradicionais junto a uma política contrária à imigração descontrolada. Isso foi suficiente para convencer seus eleitores de que ela era a melhor opção.

Um fato adicional é notável. Como nos EUA, a imprensa global chama a apoiar Biden a qualquer custo, considerando que ter levado o mundo à beira de uma guerra nuclear não é suficiente para pensar que sua figura é mais perigosa que a de Trump, na França a história se repete.

O grande perigo é que alguém que nunca governou a França chegue ao poder. A imprensa se escandaliza com a possibilidade de que Le Pen e seus seguidores possam tomar decisões, no entanto, esquecem que a decisão chave, a da guerra, foi tomada por Macron.

O globalismo, então, vê como o poder lhes escapa das mãos. A AfD alemã, o partido FPÖ austríaco ou o Fidesz de Viktor Orbán, são apenas alguns dos exemplos das alternativas que emergem. A resposta é falar do avanço da extrema-direita, do fascismo, mas é algo insuficiente para frear o cansaço público com o sistema político tradicional.

Depois de décadas de queda de renda, de um aumento da pobreza como consequência da destruição cada vez mais acelerada das classes médias e uma violenta concentração de riquezas, a rebelião está em marcha no coração do mundo desenvolvido ocidental.

A França é mais uma amostra das pressões por populações que começam a sair do esquema esquerda – direita e se perfilam mais para uma dualidade globalismo – nacionalismo.

O problema escapa ao que as elites políticas sustentam. Unir-se sob a consigna de barrar a “extrema-direita” em uma frente democrática não comove ninguém. Tampouco é uma ideia nova, quando Juan Perón chegou ao poder em 1945, a oposição política ao seu ascenso se coaligou sob a União Democrática, que unia desde os conservadores aos comunistas. Não funcionou, a história é rebelde a essas manobras. A decadência do sistema é profunda e não se pode sustentar unindo os distintos atores desacreditados pelo próprio sistema.

Cada vez menos cidadãos se comovem com o avanço da extrema-direita e menos se preocupam com a chegada de um fascismo que desapareceu na realidade há mais de meio século. Se em algum momento os apelos a frentes antifascistas tiveram sucesso, agora seu tempo passou. Hoje a desilusão e o cansaço empurram os povos para posições de ruptura, ocorre em países desenvolvidos, médios ou subdesenvolvidos. O cansaço se manifesta contra um sistema que perdeu sua capacidade de sedução para as massas.

Por isso vemos um fenômeno de ascensão que parece imparável, ganhando espaços, mas, indiretamente, forçando a aceleração dos conflitos, dado que o globalismo perde o controle de suas bases e se afasta definitivamente a possibilidade de impor seu modelo. A França demonstrou que o sistema atingiu seu fim, está se fragmentando rapidamente e os chamados à resistência contra a “extrema-direita” perdem eficiência, o sistema deve buscar outras soluções se quiser manter o consenso.

A democracia liberal baseada em partidos políticos ao serviço das causas que impõe o establishment globalista já não responde adequadamente.

É possível que vejamos o surgimento de lideranças baseadas na rede, com comprovada capacidade para comunicar e mais bem formadas que a atual classe política, que se mostra ignorante, não só venal.

Ali provavelmente veremos uma oportunidade de construir movimentos que busquem uma mudança real e melhor diante das ameaças que se impõem sobre todos nós. Mas devemos saber diferenciá-los dos falsos profetas que tomarão parte deste discurso, mas buscarão levá-lo à inação real, mudando algo para que nada mude.

A vitória de Mélenchon é nula porque teve que ceder em suas posições antisistema e pactar com Macron, o mesmo que provém do Banco Rothschild e que leva a França para a guerra com a Rússia.

O custo desta vitória é que o progressismo e a esquerda mostraram sua verdadeira face, ser parte de um sistema, uma dissidência controlada. A credibilidade foi posta em dúvida e nos faz perguntar sobre as esquerdas de nossa região que festejam a vitória do candidato pró-EUA, algo que parece esquecer diante das acusações de fascismo contra Le Pen.

Uma vitória, então, custosa e preocupante para o futuro, demonstrando que o processo de colapso continua em marcha.

Rafael Garcia dos Santos, Sociólogo

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