Opinião | Amarrando o tempo no poste

Foto: "Postes de ruas de Botafogo", Leila Moreirão/Divulgação

“O tempo só anda de ida. A gente nasce, cresce, envelhece e morre. Pra não morrer é só amarrar o tempo no poste. Eis a ciência da poesia: amarrar o tempo no poste!”, Manoel de Barros

Não tem jeito: passa um ano, entra o outro, e lá vem dezembro marcando as lembranças,  os balanços. É o período que reservamos para somar cada um dos passos dados, de olhar para trás e tentar entender os rastros que deixamos. Como aquela sensação de um livro prestes a ser fechado, mas, cujas páginas ainda guardam algumas linhas por escrever.

Este ano, então, ganhou um significado especial. Uma mistura de vida escorrendo entre os dedos, como areia fina, com o mar beijando os pés, trazendo alegrias. Enquanto os dias apressam o partir, a frase de Manoel de Barros me persegue. Parece resistência,  um desejo ingênuo  de capturar a delícia da vitalidade,  das boas lembranças, na eternidade. Como uma recusa sem fim de seguir rumo ao inevitável das coisas.

Costumo brincar que sou o primeiro dos últimos, um jeito torto de lidar com o tempo e suas ironias. É que em dezembro celebro mais um ano de vida, uma coincidência poética com Manoel de Barros. Ele, nascido em Cuiabá,  completaria mais um ano no próximo dia 19. Quando vivo, desfilava a capacidade de ver o extraordinário no ordinário, de transformar palavras em paisagens, de fazer da vida um constante exercício de descoberta e encantamento. Eu? “Muito completo de vazios. Estou sem eternidades”, como diria o mestre.

Ao longo deste ano, houve dias de joelhos ralados e noites de medo. Mas, também existiram aquelas mãos estendidas, de tanta gente boa, que nos levantaram quando o cansaço parecia não mais abandonar o corpo suado,  surrado.  Falo assim, no plural,  por entender que estes são atos comuns. Você, seu vizinho, os meus, eu… compartilhamos semelhanças, topadas dolorosas em pedras parecidas, gargalhadas infantis lambuzadas de brigadeiro.

Quantas vezes corremos sem ver? Quantas vezes deixamos os dias passarem como vagões de um trem sem janelas? Manoel nos ensinou justamente o contrário: parar, olhar, desaprender. “Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios”, ele dizia. E o que são princípios, senão a capacidade de enxergar além do óbvio?

Em meio aos ruídos das obrigações, é fácil esquecer os momentos simples e, paradoxalmente, mais significativos. Mas agora, no apagar das luzes de 2024, talvez seja hora de ouvir o silêncio e tentar, como Manoel sugeriu, desaprender o óbvio.

“As coisas que não levam a nada têm grande importância. Cada coisa ordinária é um elemento de estima. Cada coisa sem préstimo tem seu lugar na poesia ou na geral”.

Manoel de Barros morreu há dez anos… há dez anos eu mesmo deixei para trás um caminho profissional para inaugurar outro, cheio de sonhos e de bichinhos – a Foster Pet Place –, que se tornou mais que um negócio, mas um lugar onde vejo as histórias de afeto e transformação se repetirem todo dia. Dez anos depois, vejo que essa escolha ainda me molda.

Lembro-me dos meus tempos de estudante e do péssimo aluno que fui. Indisciplinado, transgressor, com dificuldades enormes com a língua portuguesa… Foi ao encontrar a poesia de Manoel de Barros que as palavras ganharam destino. Não eram mais apenas símbolos, mas instrumentos de reinvenção. “O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens”.

E, por isso, pensar no ano que se encerra também é mergulhar nas miudezas de todos aqueles outros que antecederam. O tempo não anda para trás, mas carrega consigo os vestígios do que fomos. As histórias que encontraram um ponto final, das conversas interrompidas, os olhares que demoraram um segundo a mais, os tropeços que nos empurraram para um caminho inesperado.

Dezembro e esse convite de “amarrar o tempo no poste”. Não para congelá-lo, mas para contemplá-lo e entendê-lo. Para entender que o tempo não passa, mas nos atravessa. É tão bonito isso,  não acha? Que cada segundo é um universo, e cada universo cabe dentro de um grilo, como diria Manoel. Significa olhar não apenas as cicatrizes, mas também para os recomeços disfarçados.

“A maior riqueza do homem é sua incompletude. Nesse ponto sou abastado”, já diria o homem.

Esta mistura de lembranças, cantos de cigarras, cheiro de protetor solar, aniversário e Manoel de Barros, formam o retrato do final de cada ano: há sempre uma vontade de encontrar o que se perdeu e segurar firme o que não pode ficar para trás (e precisamos carregar tudo, não abrindo mão de nada?). Com a licença dos poetas, será que podemos transformar o peso das memórias em asas, como quem renova o mundo ao brincar com borboletas?

Termino como comecei: celebrando a possibilidade de fazer “peraltagens” com as palavras. Relembre o que passou como quem observa  o símbolo de um triunfo. Comemore os gestos mais simples e profundos da vida. Por isso, amarremos o tempo no poste não para estagná-lo, mas para ouvi-lo. Que cada riso abafado, cada lágrima derramada e cada palavra dita possam ecoar como versos soltos, compondo o poema de mais um ano vivido.

Afinal, o tempo nunca para, mas é nas pausas que aprendemos a reinventá-lo. Que 2024 termine como um poema: repleto de silêncios, surpresas e versos que nos fazem continuar.

Tarciso Souza, jornalista e empresário

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*