Após inúmeros pensadores discorrerem sobre o drama do egoísmo humano, a pandemia da COVID-19 parece nos mostrar na prática as faces do individualismo ao redor do mundo e também em nosso meio. A indiferença quanto à vida alheia parece se mostrar não apenas nas relações de cunho interpessoal, mas, sobretudo nas relações entre Estados. No plano das relações individuais, a menos-valia da vida alheia parece não apenas reflexo de uma cultura pautada na utilidade dos corpos, mas também representa a lógica do colocar-se como centro do mundo. No plano das relações estatais, estados driblam outros estados via mecanismos legítimos de oferta e demanda e fazem questionar quais os limites das relações internacionais.
Desta forma, a nível mundial, iniciamos pelo estranho cancelamento de compras de equipamentos de proteção médica destinados a países como França e Brasil. A acusação é de que os EUA ofereceram até 3 vezes mais do que os então possíveis compradores, para que a carga fosse destinada àquele país. Enquanto o governo americano nega a manobra, as evidências apontam para outro lado. No caso do Brasil, por exemplo, no início de abril uma compra de EPIs (equipamentos de proteção individual) foi cancelada pela própria empresa vendedora enquanto, na mesma semana, os EUA enviaram aviões cargueiros para buscar equipamentos do gênero na China.
Há acusações ainda mais graves contra o governo americano nesta corrida para minimizar os impactos da pandemia. Um jornal alemão, com a confirmação do governo do país, apontou que os EUA teriam tentado comprar os direitos de exclusividade de uma vacina contra o coronavírus que estaria sendo desenvolvida na Alemanha.
As manobras do governo americano revelam um caráter de atribuição de mais ou menos valor da vida dos indivíduos produtores e consumidores norte-americanos por parte desta potência mundial. Aqui não se pretende questionar a legitimidade das manobras. A lógica do mercado, de fato privilegia quem possui maiores cifrões. Entretanto, ainda que por meios legítimos, a atitude dos EUA parece deixar claro ao mundo que, entre americanos e o resto, salvem-se os americanos. Talvez nem por patriotismo ou cuidado com a nação. Se um povo adoece, adoece também sua economia, suas relações comerciais internas. O que fazer, então, se um país inteiro para e assim permanece durante um período suficiente para causar recessões significativas? É necessário, portanto, cuidar da população que é produtora e consumidora. Em seu texto “É o capitalismo, estúpido”, Lazzarato deixa claro que o estado de emergência decretado nos EUA se apresentou como uma oportunidade a corporações, que beneficiaram-se de fundos públicos por meio de ações que envolvem o tratamento e prevenção da pandemia. Fechando este parêntese, voltemos às relações internacionais.
O ponto a ser levantado é a ilusão do mundo como uma grande família. Trocas de mercadorias entre países, antes de revelarem qualquer traço de comunidade, de apreço pelos hábitos, costumes e tradições dos mais diferentes povos que constituem o mundo, representam nada mais que trocas comerciais dadas a partir da lógica da oferta e da demanda. A comunicação entre pessoas de todas as partes do mundo revela nada mais do que uma rede comunicacional que viabiliza e intensifica a troca de informações. A pandemia do coronavírus tem mostrado que não somos a propalada comunidade mundial, mas sim constituídos por enormes desigualdades, por jogos de interesses e seremos pisoteados caso isso implique a sobrevivência de outro Estado mais poderoso.
A justificação deste caráter predatório entre as nações se dá por meio de mecanismos que legitimam relações econômicas em detrimento de qualquer parceria em prol da saúde universal. Importante aqui talvez seja apontar que mesmo questões de sobrevivência são tratadas antes sob a perspectiva da obtenção de dividendos financeiros, lucro. Este talvez seja um dos traços que nos permitem perceber como a vida, o bem-estar, a saúde, não estão no centro da dinâmica do modo de produção das relações humanas e materiais que nominamos de capitalismo. Neste âmbito, a vida parece, inclusive, se resumir a força de trabalho e capacidade de consumo.
Já em níveis de relações interpessoais, a indiferença à vida alheia parece carregada, inconscientemente, do discurso neoliberal e no caso do Brasil, do discurso de ódio construído por alguns grupos sociais nos últimos anos.
Além das demonstrações de egoísmo ao estocar suprimentos, nota-se uma desconsideração com os menos favorecidos, ao reivindicar-se a volta imediata ao trabalho, desconsiderando recomendações de isolamento e inclusive a responsabilidade do Estado diante da pandemia. Esta negação da quarentena e de auxílio governamental parece se dar mais por implicar a ausência, ou melhor, uma pausa na produção, no consumo e, consequentemente, no lucro, do que por envolver as mãos do Estado na economia privada, (inclusive mostrando a atual ineficiência da mão, mais do que nunca, invisível do mercado).
Por sua vez, o discurso vigente em certos setores sociais é mais do mesmo. Enxurradas de fake news colocam partes da sociedade a postos para defender o messias, cujo governo é alvo de ataque de um “vírus chinês”. Conspiradores comunistas ao redor do mundo tentam a todo custo derrubar o honesto homem de bem, defendendo um isolamento social que apenas quebrará a economia e não faz sentido visto a baixa (?) taxa de letalidade do vírus. Este discurso não surge aleatoriamente e não é sustentado por meia dúzia de fãs em redes sociais, mas é construído no intuito de minimizar e camuflar os perigos que a má gestão da coisa pública em conjunto com um vírus pode causar a um país. A consequência de admitir estas inverdades é a minimização da importância da prevenção. Desconsideração dos danos, das vidas perdidas. É a intransigência quanto às recomendações de prevenção. É, em resumo, uma gestão da vida biológica que a torna matável.
Minimiza-se o drama das mortes pela covid-19 sob o pretexto de ser o paciente parte do grupo de risco. Minimiza-se o caos que a intransigência pode gerar no sistema de saúde alegando-se a insignificância do número de mortes em relação ao número de curados ou em relação às mortes por outras causas. Minimiza-se a morte e, agora, também a vida. Como se existisse um número de vítimas ideal para começarmos a encarar este momento com seriedade.
Talvez agora o ponto seja nos perguntarmos pela origem deste discurso de minimização, já que não é restrito a determinados grupos e, se faz presente em parte significativa da sociedade brasileira. Considerar isto também nos livra de julgamentos morais sobre indivíduos singulares, o que pode vir a suceder por não considerarmos o caráter expandido deste modo de pensar. O que nos parece é que esta é mais uma das faces de uma racionalidade amplamente difundida e enraizada na sociedade brasileira e que, antes de qualquer aspecto social, preocupa-se com a manutenção deste estado de produção e consumo em massa. Justifica-se essa necessidade com previsões econômicas, transformando o mercado e a economia em entidades com vida e vontade próprias e, não sendo os homens capazes de controlar a voracidade do mercado paralisado, a estes só resta que se rendam e levem consigo suas empresas e funcionários.
Aqui, mais do que indiferença, nos parece nítida uma conformação com as mortes ocorridas e que estão por vir. Conformação com a falta de responsabilidade de um Estado em prover condições mínimas para a sobrevivência dos trabalhadores, dos micro e pequenos empresários, dos setores que saem de fato prejudicados desta crise, em contraste com os benefícios concedidos a bancos e ao grande empresariado. Conformação e contentamento com reivindicações de autoritarismo, como foram os protestos bolsonaristas do dia 19 de abril de 2020. Conformação com uma declaração de nítido desprezo com as vidas brasileiras, representadas por um “e daí?” do que era, supostamente, o maior líder da nação. Conformação que, circunscrita na realidade nacional, se expressou, entre outras inúmeras vezes, quando um deputado federal, ao proferir seu voto de impeachment no Plenário da Câmara em 31 de agosto de 2016, homenageou um torturador da ditadura militar, ou, noutra ocasião, quando esse mesmo personagem anunciou publicamente que iria metralhar opositores. Não bastassem estes conformismos, observamos esta infeliz realidade quando a estética nazista foi reproduzida por agentes governamentais responsáveis pelas políticas públicas de cultura, ou quando a ditadura militar foi (e constantemente é) requisitada novamente.
Por essas e outras, a indiferença não assusta. Indiferença entre países ou entre vizinhos. Perdemos, se um dia tivemos a capacidade do nos colocar no lugar do outro, de sentir com o outro, aquilo a que Adam Smith chamou de simpatia. Parecem cada vez mais claras as limitações que temos a nível global, nacional, local. Limitações estas que não são privilégio deste tempo, mas que, agora, deixam nítido que a indiferença e a conformação custam vidas. E o que hoje significa um descompromisso com a vida em sua totalidade no presente, necessariamente implica o descompromisso com a manutenção da vida para as futuras gerações.
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