O presidente Jair Bolsonaro durante seu mandato, transitou através de discursos e posicionamentos dúbios, e isso lhe garantiu sobrevivência política. Conseguiu, inclusive, realizar o que Trump, nos Estados Unidos, não conseguiu. Entretanto, no dia 7 de setembro de 2021, ele abriu mão dos posicionamentos dúbios e se colocou inteiramente em um lado belicoso. Isso já se mostrou um grave equívoco.
O que estamos querendo dizer?
Diversos expoentes da direita surgidos por meio da onda surfada da eleição de Trump, são crias de um movimento mundial de reação evidente ao neoliberalismo globalizante. O capitalismo transnacional dirigido pela financeirização e digitalização é universalizante. O capitalismo nacional baseado nas velhas fábricas, que abrange o operariado branco e conservador, se tornou, por óbvio, a base de sustentação eleitoral do trumpismo. Essa reação de amargura de parte dos trabalhadores americanos deu votos a Trump. Bolsonaro, de modo contrário, procurou se situar em ambas as tendências postas pelo capitalismo atual, e até chegou a vislumbrar uma corrente particular.
Bolsonaro assimilou, respaldado por Paulo Guedes, o neoliberalismo globalizante. Se colocou na posição de criar a partir daí uma sociedade liberal e democrática, ao mesmo tempo uma sociedade menos norteada pela constituição de 1988 e mais adaptada às medidas privatizantes e neoliberais propostas pelas quatro reformas de Guedes. Este era o escopo de Guedes e dos empresários que financiaram a campanha de Bolsonaro de 2018. Seria o complemento e o aprofundamento da Era FHC de desintegração do que foi acordado em 1988. Este movimento representou um dos posicionamentos de Bolsonaro.
A outra vertente de posicionamento estava calçada nas prerrogativas de Steve Bannon e Olavo de Carvalho: a distopia da sociedade sem laços sociais, o estado de natureza no sentido hobbesiano, no qual Bolsonaro sempre triunfou: Rio das Pedras. A ideia basilar da distopia de Bolsonaro, parece, era e é a de difundir para todo o território nacional todo o modo de vida de Rio das Pedras, em que as normativas sociais e a gestão política é realizada pelas milícias e igrejas evangélicas. O ordenamento geral ficaria sob a tutela do capitalismo financeiro e sua mão quase invisível, um componente distante do cotidiano das cidades tornadas favelas.
Trump se agarrou no ressentimento do operariado branco das velhas fábricas, esquecido por Obama e pelo Partido Democrata. Bolsonaro, por sua vez, também se agarrou no ressentimento, no seu caso, no ressentimento presente na classe média que ficou sufocada pelos juros do cartão de crédito e congelamento de seus salários no governo Lula, que deu ganho a banqueiros e o restante, como sobras às classes populares.
Assim, uma posição de Bolsonaro se situou na aventura do neoliberalismo e em sua utopia privatizante. A outra posição de Bolsonaro marcou terreno na distopia hobbesiana de Rio das Pedras. Bolsonaro delegou aos filhos o projeto da distopia, enquanto ele se mantinha aliado de Guedes.
Porém, enquanto seus parceiros de projeto distópico tiveram de deixar o governo, ou seja, a partir da saída da “ala ideológica” do governo (Salles, Weintraub, Araújo), e também a partir do afastamento de Olavo de Carvalho, que ficou doente, Bolsonaro paradoxalmente voltou a atuar com base na narrativa do confronto. Não é ilógico especular que o próprio Steve Bannon passou a dar alguns direcionamentos para o presidente. Caso contrário, é difícil explicar a abrupta mudança de comportamento de Bolsonaro. Claro que podemos levantar a hipótese de que Bolsonaro de fato acreditou que o STF estaria na iminência de prender um filho seu. E esse fator o teria deixado mais agressivo sob o ponto de vista retórico.
Já no período das eleições municipais, intercalando com os movimentos de protesto contra ele por conta da má administração da pandemia, isso tudo acompanhado pela instalação da CPI da Covid, fez com que Bolsonaro fosse alterando sua atuação. A CPI claramente o desestabilizou. E as investigações do STF sobre seus correligionários o deixou perplexo, se sentido perseguido e injustiçado, logo, naquele momento Bolsonaro já estava enfurecido.
Nesse redemoinho, o presidente retirou seus filhos da linha de frente e ele mesmo assumiu o projeto distópico. Abandonou Guedes à própria sorte e tornou-se ele próprio porta voz de ações variadas com fins de confronto com o Judiciário. Abriu mão da administração do governo e se dedicou a um embate ideológico de fachada. Sua retórica de confronto e conturbação visivelmente se intensificou. No limite, talvez Bolsonaro tenha começado a acreditar que ele seria preso pelo STF, como foram presos correligionários seus, como Roberto Jefferson e o deputado Silveira. Ele chegou a mencionar algo a respeito de sua prisão. Desde então, partiu para o confronto com o STF. Nomeou dois alvos: os ministros Barroso e Alexandre de Moraes.
Bolsonaro desistiu de ter ministros dentro do STF de modo a minar o órgão por dentro. Tampouco tem se interessado pela eleição de seu indicado, o pastor evangélico que foi ministro da Justiça, André Mendonça. Resolveu estigmatizar o STF. Passou a imaginar ter a mesma força de rua que o elegeu e, no 7 de Setembro, quis mostrar prestígio popular diante da Corte e de toda a nação. Deu errado, só conseguiu colocar 125 mil pessoas na Av. Paulista. Esse número para grandes eventos de rua, convenhamos, é comum, já que é o que qualquer festa de domingo coloca, sem dinheiro! E Bolsonaro gastou! Seu intento recebeu volumosos financiamentos por parte de homens do agronegócio.
É possível, todavia, que Bolsonaro não tenha errado o cálculo, mas atuado de modo a manter a fidelidade, através da retórica de confronto, a parte de seus eleitores mais afinada com o seu projeto pessoal – seja este qual for, uma vez que os adeptos que o apoiam inadvertidamente já foram pejorativamente denominados em todo o país como o “gado do Bolsonaro”. Isso o garantiria, eventualmente, apoio político para lidar com a justiça após sua saída do governo. Essa atitude, aliás, seria muito similar ao que fora executado por Trump, nos Estados Unidos.
Definitivamente, no entanto, não há golpe. Há incautos na esquerda que afirmam e reafirmam que o “golpe já começou”, mas, nesse caso, é plausível e inteligente desconsiderar tal opinião. Parte da esquerda age assim por também se apoiar na narrativa do confronto. Essa ala anseia por Bolsonaro enquanto um “macho golpista”, justamente pelo desejo quase patológico de confrontação ideológica. Precisam disso. Nada falam ou pensam de real análise política.
Concretamente, não houve (nem há) golpe, mas a deterioração contínua dos poderes da República. Bolsonaro oscilou de forma vacilante entre administrar pelo neoliberalismo e desenvolver o projeto antissistema. Entretanto, dado que sua administração falhou em todos os intentos, nos setores em que se dedicou a interferir, optar definitivamente pela distopia parece ser seu caminho natural. Contudo, nesse momento ele já não aparenta ter força popular para alcançar tal objetivo, e o processo de corrosão da República desperta na população mais repulsa do que apoio.
Uma sociedade com inflação, gasolina alta e desemprego não fica inerte e domável frente a qualquer narrativa. E há, ainda, um perigo maior para Bolsonaro, pois em uma sociedade em que aplicador pode vir a perder um centavo na Bolsa, surge uma ira em relação ao governo por parte das elites que jamais foi reproduzida pela classe trabalhadora. Dilma Rousseff nos serve como referência histórica disso.
Boa análise!!