Opinião: Brasil mal educado II

Foto: reprodução

Um ano e seis meses de governo Bolsonaro.  Tragédia educacional. Três ministros e nenhum projeto estratégico para a educação nacional.  Ministros ineptos. Vinculados à ala ideológica do governo liderada por um obscuro ventríloquo sitiado nos Estados Unidos.  Besteiras. Balburdias. Impropérios. Desrespeito. Precarização e desmonte da educação pública, dos Institutos Federais e das Universidades Públicas. Desrespeito escancarado com  professores, pesquisadores, acadêmicos, com alunos. Declararam guerra a moinhos de vento. Erros flagrantes de português em pronunciamentos ministeriais. Grosserias de toda ordem. Improdutividade custeada pelos cofres públicos. A pátria mãe cada vez mais madrasta, mal educada e ressentida.

Esta situação aviltante em que se encontra a educação nacional não se deve ao fato anunciado pelo capitão de ser impedido de governar pelo STF, ou pelo congresso nacional. Não se deve ao posicionamento ostensivo de suposta oposição, praticamente inexistente no cenário político. Também não se deve ao sorrateiro marxismo cultural impregnado nas vísceras da comunidade educacional nas alucinadas visões do Velez e do Weintraub. Também não se deve ao conteúdo ideológico da cartilha de educação sexual enviada às escolas públicas como parte de uma política pública de saúde e educação gestada e encaminhada em governos anteriores. Esta situação se deve única e exclusivamente a um governo de plantão destituído de um projeto estratégico de nação, de desenvolvimento nacional.

É imperativo esclarecer ainda que a tragédia que vive a educação nacional não se deve a baixa capacidade cognitiva proporcional à alta disposição conflitiva do capitão reformado agora na condição de presidente. Evidentemente sua ausência de apreço por livros, pela leitura, pelo argumento bem constituído, pela cultura é público e notório e, intensifica o desprezo, senão consolida nos seus ministros da educação a ausência de compromisso com a constituição de um projeto educacional  democrático, amplo e consistente, a altura dos desafios internos e externos enfrentados pelo país.

A tragédia da educação nacional promovida pelo atual governo com suas singularidades se circunscreve na forma constitutiva da sociedade brasileira. O desprezo pela educação é herança advinda das estratégias do patrimonialismo estamental lusitano constitutivo da colônia de exploração.  À Coroa portuguesa e a sua extensa nobreza interessava a exploração a partir da mão-de-obra escrava das riquezas naturais, do pau-brasil, do ouro, do açúcar, do café, entre outras possíveis benesses naturais encravadas neste solo generoso e gentil.  Nos planos exploratórios das terras além-mar não estava em jogo à conformação de uma colônia de povoamento, senão simplesmente a extração, a rapina das riquezas naturais realizada sob a violência da escravidão indígena e, sobretudo africana.

Ironicamente, ou talvez melhor, dramaticamente a conformação social brasileira em suas origens se manifesta contemporaneamente.  A brutal extração das riquezas realizadas sob a incontida violência sobre povos indígenas que perdura na atualidade e, das nações africanas nestas terras foram realizadas por uma nobreza luzitana de tradição medieval endividada com os centros financeiros europeus vigentes naquele contexto, as cidades autônomas de Genova e Veneza, transitando posteriormente para a Holanda e Inglaterra.  Na obra de Raimundo Faoro: “Os donos do poder” há uma extensa e esclarecedora descrição desta nobreza feudal.  Patrimonialista em seus fundamentos, não distinguia interesses públicos dos interesses privados. Avessa ao trabalho sistemático, a livre iniciativa, a liberdade de empreendimento político e econômico valia-se de uma extensa burocracia de funcionários públicos bem aquinhoados financeiramente para a imposição e controle dos interesses privados sobre a dinâmica social e econômica pública. 

Funcionários públicos de primeiro escalão, ministros, apadrinhados políticos, militares, esposas, filhos e filhas de militares, “doutores juízes”, todos com foro privilegiado e imoralmente bem remunerados à custa do erário público atuando sistematicamente na defesa dos interesses privados em detrimento dos interesses públicos. Acrescente-se a estas castas patrimonialistas as oligarquias e a iniciativa privada financiando candidaturas e elegendo representantes que lhes garantiam e continuam garantindo o financiamento e refinanciamento de dívidas privadas com recursos públicos a revelia das necessidades estratégicas de desenvolvimento nacional. A corrupção pública está visceralmente vinculada em sua origem à corrupção advinda da iniciativa privada.

Neste contexto, inexistia qualquer iniciativa educacional pública no Brasil colônia. A educação foi confiada a Companhia de Jesus (Jesuítas). Era uma educação catequética. Tratava-se de evangelizar os gentios. Integrá-los na medida do possível na economia da salvação cristã católica. Paradoxalmente os escravos africanos presentes nestas terras aos milhares estavam fora desta cruzada evangelizadora. Capturados e comercializados como espécie sub-humana, senão animal, desprovidos de alma estavam desprovidos da misericórdia eclesiástica.  Por outro lado, os filhos dos donatários, dos senhores de engenho, dos barões, dos viscondes, eram enviados à Portugal, ou a outros países da Europa para compor sua formação, seus estudos. Ao retornarem com seus títulos assumiam os interesses privados de suas famílias na condução dos negócios públicos.

As reformas educacionais de matriz iluminista, promovidas por Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), também conhecido como Marquês de Pombal, tinham como mote permitir que Portugal arrefecesse sua cosmovisão medieval, estamental, patrimonialista, assumindo os pressupostos iluministas, científicos e, emancipatórios advindos com as revoluções burguesas, científica e industrial, ocorridas majoritariamente na Inglaterra e, seguida por holandeses e franceses. Porém, na colônia brasileira a situação permanece quase que inalterada.  Com a independência e, a conformação do Brasil imperial este quadro educacional herdado do período colonial pouco se alterará.   A partir do golpe de instauração da República pelos militares em 15 de novembro de 1889, apesar de seus fundamentos positivistas,  os avanços no campo educacional se apresentarão tímidos, insuficientes para a constituição da res pública, necessário para justificar o discurso republicano nestas terras.  Nossa república nasceu destituída de sua res pública. Mutilada, desgraçada. Privatizada ainda quando deitada em berço esplêndido.  

E assim, transitamos ao longo do século XX com infindáveis discursos de notáveis personalidades políticas, alguns de origem aristocrática, outros de origem oligárquica, bem como da nascente burguesia nacional, sobre a importância da educação pública, gratuita e universal para o desenvolvimento nacional.  Ressalte-se também que transitamos ao longo do século XX com inúmeros golpes de estado. Inúmeras foram as reformas educacionais do inicio do período republicano aos nossos dias. Não nos faltam análises extensivas de cada uma destas reformas que se sucederam ao longo do século XX, aos nossos dias.  Cientes das inúmeras variáveis políticas e sociais implicadas constata-se na sobreposição destas reformas a ausência de consenso por partes das elites brasileiras herdeiras do patrimonialismo e do clientelismo lusitano em torno das necessidades educacionais para a constituição de um projeto nacional de educação consistente.

Nesta direção, ressalte-se ainda que ao longo do século XX o flagelo do analfabetismo da população brasileira será uma constante nos debates nacionais. Entre fins do século XIX e primeiras décadas do século XX, o analfabetismo era condição de cerceamento do exercício do voto.  Extensos programas de alfabetização em massa foram implementados ao longo do século pelo Estado brasileiro, entre eles o MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização) implementado pela ditadura militar em 1968. Inúmeros educadores desenvolveram métodos e práticas bem sucedidas e internacionalmente reconhecidas de alfabetização de adultos, entre eles Paulo Freire (1921 a 1997) com a Pedagogia do Oprimido, o que lhe custou o exílio.  Ainda nos dias de hoje, o referido autor é execrado por segmentos da sociedade brasileira e, pela incompreensão de intelectuais e suas singulares motivações.

Sob tais pressupostos é imperativo ter presente que para a sociedade brasileira, sobretudo para suas elites, assentadas sob um ethos escravocrata, oligárquico, patrimonialista e clientelista, educação é uma questão política por excelência. Trata-se de perpetuar mesmo sob demandas do capital produtivo, mas, sobretudo financeirizado (ávido por modelos educacionais eficientes na conformação de subjetividades empreendedoras, ao estilo empresário de si mesmo com capacidade de inovação, criatividade e liberdade de produção e consumo), um modelo educacional excludente para amplas parcelas da população brasileira.  Ou dito de outra forma, trata-se reiteradamente da estratégia de perpetuação do patrimonialismo, que se caracteriza pelo constante sequestro do Estado, do espaço público, dos bens públicos concentrados nas mãos de elites nacionais.  Assim, promove-se uma educação para a reprodução do modelo social, político e econômico concentracionário da riqueza socialmente produzida e, ao mesmo tempo de socialização e da criminalização da pobreza extensamente difundida entre a população brasileira.  Tal condição se revela nas incontestes estatísticas internacionais comprovando que a sociedade brasileira é uma das mais desiguais em âmbito mundial. 

As elites nacionais herdeiras do ethos escravocrata não hesitam em usar a violência sob as mais variadas formas possíveis, entre elas promovendo a precariedade do sistema educacional para a perpetuação da exclusão, da desigualdade social como estratégia de manutenção de seus privilégios. São elites cujas origens apresentam-se desprovidas do ímpeto de construção de uma nação, de um projeto de desenvolvimento nacional consistente.  Construir um país a altura dos desafios mundiais implica necessariamente no compartilhamento de oportunidades, no livre acesso à todo e qualquer indivíduo aos bens culturalmente constituídos, entre eles a uma educação de qualidade. 

O governo do capitão é a expressão da retomada do poder, dos recursos públicos, dos ativos do Estado por parte da elite escravocrata patrimonialista e fisiológica nacional subserviente porque aquinhoada com torrão de açúcar pelos poderes econômicos globais em compensação aos bons serviços prestados no desmonte das demandas de desenvolvimento humano e social que conformam as bases de um possível desenvolvimento nacional.  Os governos progressistas advindos após a promulgação da Constituição de 1988 e, o anuncio de um estado de bem-estar social reavivaram a voracidade destas elites, que não titubearam em quebrar o Estado, em submeter à sociedade brasileira a perda de direitos sociais, ao achatamento de sua renda e, em colocar no poder um representante disposto a governar sob prerrogativas autoritárias no desmonte do parco estado de bem-estar social alcançado ao longo de aproximadamente últimos 20 anos.

É sob tais prerrogativas que se pode compreender a aparente ausência de projeto governamental estratégico para a educação nacional. O mesmo argumento é extensivo para a saúde no contexto da pandemia que já consumiu milhares de vidas.  Ou dito de outra forma, na ausência de um projeto educacional se revela de forma clarividente o projeto político estratégico das elites escravocratas brasileiras de precarização das políticas públicas educacionais, justificando a privatização de segmentos da educação pública, sobretudo universidades federais, a precarização da educação tecnológica promovida pelos Institutos Federais, bem como o incentivo a iniciativa privada em atuar de forma mais decisiva na educação fundamental. Ou seja, trata-se do desmonte do Ministério da Educação, do CNPq, da Capes, da estrutura educacional pública brasileira.

Governo obscuro a serviço de uma elite obscura em tempos sombrios. Governo patrocinador de fake News, de intolerância, de violência social generalizada. Mas, sobretudo governo de elites que condenam toda uma geração de crianças, de adolescentes e jovens a sempiterna dinâmica social escravocrata de subserviência, de subdesenvolvimento, de precariedade vital advinda da profunda desigualdade social.  Numa sociedade “mal educada” viceja o embrutecimento, a desconfiança, os preconceitos de toda ordem, as teorias supremacistas, as teorias terraplanistas,  a crença inconsequente na liderança messiânica de forte tonalidade autoritária do “Messias”.  Nesta ausência de disposição de reconhecimento das profundas contradições políticas e educacionais, alguns passam a apostar no obscuro e metafísico discurso da liberdade de mercado, na necessidade do definhamento do Estado em sua função social e, no agigantamento do Estado em sua condição coercitiva na garantia do direito de apropriação indébita das riquezas nacionais, diante da eminente ameaça de sublevação advinda das demandas famélicas de largas parcelas populacionais.

Num contexto social em que educação pública de qualidade em seus diversos níveis é simplesmente desconsiderada, em que a pesquisa e a produção de conhecimento científico não fazem parte dos horizontes vitais de milhões de brasileiros que apenas lutam para sobreviver, bem como professores são aviltados por cargas horárias excessivas e baixos salários, não há muito o que fazer a não ser celebrar a obtusidade e a condição grotesca de elites que subjugam a vitalidade de todo um território e de todo um povo. Nesta direção, convido-os a apreciarem alguns trechos da letra da canção do grupo Legião Urbana composta nos fins dos anos 80 do século XX.

PERFEIÇÃO – LEGIÃO URBANA

Vamos celebrar a estupidez humana (…)
O meu país e sua corja de assassinos covardes
Estupradores e ladrões (…)

E nosso Estado que não é nação

Celebrar a juventude sem escola, as crianças mortas 

Celebrar nossa desunião (…) 

Vamos comemorar como idiotas  (…) 

Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta de hospitais (…) 

Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos

Comemorar a água podre e todos os impostos
Queimadas, mentiras e sequestros
Nosso castelo de cartas marcadas
O trabalho escravo, nosso pequeno universo
Toda a hipocrisia e toda a afetação
Todo roubo e toda indiferença
Vamos celebrar epidemias (…)

Vamos celebrar a fome (…)
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar o coração (…)

Vamos festejar a inveja
A intolerância, a incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente a vida inteira
E agora não tem mais direito a nada

Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta de bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror de tudo isto
Com festa, velório e caixão (…)
Chega de maldade e ilusão (..)

Nosso futuro recomeça
Venha que o que vem é perfeição!

2 Comments

  1. Não ….bom era no tempo do Lula e da Dilma ….pode chorar …o choro é livre .

  2. ….no Chile, em Cuba e na Venezuela ,não ….se aqui esta ruim , mude-se para lá ….já vai tarde .

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