Opinião | Confiança e responsabilidade

Em meu último texto, coloquei em pauta a relação entre ética e a possibilidade de um código de ética profissional, abordando a necessidade de termos confiança nas pessoas e nas instituições para que possamos viver em sociedade ou, ainda, promovermos o desenvolvimento. Essa confiança nas pessoas e nas instituições perpassa por ter um mínimo comportamental que se espera que as pessoas, enquanto cidadãos em seu dia a dia, bem como enquanto profissionais e autoridades, tenham. Contudo, mais uma vez, talvez seja esperar demais.

Tivemos noticiado o caso do anestesista que supostamente teria estuprado uma ou mais mulheres durante o parto. Depois disso, notícias sobre uma fonoaudióloga que, supostamente, teria torturado crianças aos seus cuidados. E as notícias se acumulam de modo que, apesar de as pessoas saberem que não se trata da regra, e sim da exceção, há com isso uma promoção de uma sensação de ausência de confiança no “outro”, em profissionais, em instituições. Deve-se ter noção da responsabilidade que vem junto com a credibilidade que as pessoas recebem quando estão a agir por uma instituição ou uma classe profissional.

Além disso, tivemos também a circulação do vídeo do estupro sem que necessariamente a imagem do rosto da vítima fosse ocultado, obrigando a vítima e os seus familiares a conviverem com essa exposição explícita da violência na internet. O bom senso indicaria que o vídeo que foi acertadamente gravado como meio de denúncia e prisão do suposto criminoso, ficasse restrito apenas à polícia e aos desdobramentos jurídicos. Não apenas enquanto profissionais, mas enquanto pessoas, há a necessidade de se resgatar a ética e a responsabilidade.

Por falar em responsabilidade, o que se está a ver dia a dia é um processo de normalização de sigilos de 100 anos, seja sobre um processo disciplinar de um general, seja sobre a atuação por quatro meses de cinco servidores da Receita Federal em um trabalho que veio a favorecer a defesa jurídica de uma figura pública acusada de “rachadinha”, acusação essa que por vezes assenta no crime de peculato, por vezes de improbidade administrativa. E, diga-se de passagem, tal prática supostamente teria sido a mesma praticada por anos, por mais membros da mesma família, incluindo o pai de tal figura pública. A quem interessa esses sigilos que se coloca ou se tenta colocar inclusive em lista de quem entrou em gabinetes? É uma ação que colabora para a confiança nas pessoas e nas instituições?

Nesse sentido, importa abordar a questão dos princípios da administração pública, para citar a Constituição Federal em seu Artigo 37, “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. A cada um dos atos da administração pública, como, por exemplo, o acima mencionado, ou, ainda, o orçamento secreto, e tantos outros, cabe questionar com seriedade: tal ato atende a legalidade? É o trato da coisa pública com impessoalidade? É moral? Atende aos requisitos de publicidade, ou seja, é transparente? Tal ato é eficiente para o bem público?

Lembremo-nos que todas as leis, atos e omissões normativos estão sujeitos ao chamado “Controle de Constitucionalidade”, que é um mecanismo para corrigir tais leis, atos e omissões para que os princípios constitucionais sejam respeitados. Contudo, não raro o que vemos são atos e leis que são contrários à Constituição e, quando o poder judiciário explicita isso, há a acusação infundada de interferência de um poder sobre outro. Leis e atos contrários à Constituição indicam que talvez não se possa esperar um mínimo comportamental de quem está a promover tais leis e atos inconstitucionais. Quando se acusa o mecanismo previsto de corrigir tais falhas, de estar fazendo algo que não é a sua função, com a pecha de “ativismo judicial” e tudo o mais, se está a atribuir a outra instituição também a desconfiança. Confiar em quem?

Essa promoção da desconfiança vemos crescer dia a dia inclusive por meio de falas irresponsáveis, como as falas desencontradas que interpretam o convite do TSE aos militares para, assim como com outros tantos grupos e equipes, auxiliarem na fiscalização do processo eleitoral. Parece haver uma confusão somente por parte de quem fala por esse grupo, entre “fiscalização” e “tutela”. Mas tal convite talvez por si só já tenha sido despropositado, uma vez que vemos no mesmo segmento convidado a fiscalizar, as denúncias se acumularem por, supostamente, falta de fiscalização inclusive das licitações de “Viagra”, de próteses penianas, de picanha, de cerveja entre outros tantos escândalos, que ainda cabe investigações e defesas, mas, sobre os quais, assim como para qualquer ato da administração pública, caberiam reflexões básicas como os presentes na Constituição Federal em seu Artigo 37 no trecho já transcrito acima.

Talvez o que estejamos a presenciar em alguns dos casos mencionados cotidianamente perpasse por uma ausência do uso da razão, de se saber o que lhe cabe fazer, de como fazer, da responsabilidade inerente ao que se faz. Vamos, por exemplo, confiar que tenha porte de arma quem tem condições de discernir quando deva usá-la. E lá estamos no final de semana passado com mais um caso de alguém com porte legal de arma assassinando outra pessoa em seu aniversário, de modo premeditado, como se fosse de fato uma ocasião para o uso de tal arma. Ou, ainda, nessa sexta feira, mais uma pessoa com porte legal de arma assassinando a esposa, dois filhos, enteada, mãe, irmão e outras pessoas que estavam na rua.

Sensação de insegurança, sensação de ausência da possibilidade de confiança nos outros, de uniforme ou não, autoridade ou não, sensação de ausência de responsabilidade pelos atos. A própria figura que era para ser o líder da nação acumula recordes em porcentagem da população que nunca confiam em nada do que ele diz. Como ser liderado por alguém em quem nunca se confia no que diz?

Vivemos tempos nos quais se evita falar em termos de “mentira”. Se opta com frequência por expressões como “faltar com a verdade”, ou que se trata de apenas uma “narrativa”, ou seja, como se um fato pudesse ser outra coisa além de um e mesmo fato. E é a época da “pós verdade”, da terra plana, da desconfiança nas vacinas, dos ataques às eleições, das teorias da conspiração, das “fake news”, da relativização e, com isso, da queda na possibilidade da confiança, com todos os desdobramentos do que vem junto com a queda na possibilidade de confiança no “outro”, no que se espera de um profissional, no que se espera de uma autoridade, no que se pode esperar de uma instituição. É o que pode ligar tão distintos fatos e notícias que tivemos nessa semana.

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