Apaga-se uma tocha. Erguida na mão direita da Estátua da Liberdade, o símbolo plantado no rio Hudson há 135 anos para iluminar o ideário da democracia americana recebeu uma carga de lama que acabou respingando sobre a Declaração da Independência dos Estados Unidos, que a deusa romana Libertas segura não mão esquerda. 6 de janeiro de 2021 ficará na história norte-americana como o mais triste dia de sua trajetória democrática. A deusa está com vergonha.
Nessa fatídica data, o Capitólio, sede da Câmara dos Representantes e do Senado, conhecido por ser um dos lugares mais guardados do planeta, foi invadido por manifestantes açulados pelo (nada mais, nada menos) chefe do Executivo, o republicano Donald Trump, inconformado por ter perdido a eleição para o democrata Joe Biden. A tocha apagada pela torpeza do chefe de Estado, o mais tosco político que já habitou a Casa Branca, infelizmente terá consequências sobre as democracias do planeta, cujos protagonistas podem, mais cedo ou mais tarde, querer imitar a índole autoritária do bilionário americano.
Não há como deixar de lembrar a pena do brilhante advogado francês Alexis de Tocqueville que, aos 27 anos, escreveu em 1832 um dos mais belos livros do século XIX, A Democracia na América, depois de ter passado uma temporada nos EUA para conhecer o sistema judiciário. Assim registrava o espírito público que viu: “quando os povos ainda são simples nos seus costumes e firmes nas suas crenças, quando a sociedade repousa suavemente sobre uma ordem de coisas antigas, cuja legitimidade nunca é posta em dúvida, vê-se reinar esse amor instintivo pela Pátria…amor que tem a sua fonte principal naquele sentimento irrefletido, desinteressado e indefinível que liga o coração do homem aos lugares onde nasceu”.
E o que pode explicar o terrível episódio que tirou a vida de quatro pessoas, obrigou senadores e deputados a ficarem de cócoras, permitindo que a matilha de cães furiosos depredasse móveis e espaços, chegando alguns a ocupar a mesa central do comando parlamentar? A ambição desmesurada. Cito em um dos meus livros o pensamento do cientista político Robert Lane que, em Political Life, explica como o excesso de ambição pelo poder funciona como um bumerangue. Diz: “A fim de ser bem-sucedida em política, uma pessoa deve ter habilidades interpessoais para estabelecer relações efetivas com outras e não deve deixar-se consumir por impulsos de poder, a ponto de perder o contato com a realidade. A pessoa possuída por um ardente e incontrolável desejo de poder afastará, constantemente os que a apoiam, tornando, assim, impossível a conquista do poder”.
Com o maior sistema democrático do planeta, como é reconhecido, os Estados Unidos acabam de ver ameaçada esta posição, eis que não faltarão aqueles dispostos a fazer maléficas comparações. Um senador republicano, atentem bem, chegou a dizer que o país dava o mesmo exemplo de uma “República de bananas”. Os europeus estão escandalizados. A França, que fez a doação da Estátua da Liberdade aos EUA, aduz que o símbolo mais visível da democracia americana, seu presente fincado no porto de Manhattan, em Nova Iorque, já não será visto como imaculado, sagrado, imune às pedradas das hordas radicais. Boris Johnson, do Reino Unido, que parecia conservar certa amizade com Trump, chamou o episódio “uma vergonha”. Ângela Merkel, da Alemanha, ficou “triste e furiosa”.
Já o nosso Chefe de Estado garante que a cena da invasão ao Congresso americano, caso o voto impresso não seja instituído, pode ocorrer por aqui. E, sem provas, voltou a dizer que a eleição nos EUA foi fraudada. “Mortos votaram, foi uma festa lá.” Ora, nenhuma Corte americana viu fraude. Trump, que tem menos de duas semanas no poder, ficou isolado dos próprios correligionários. E não contou com a simpatia das Forças Armadas para sua tentativa de golpe. Por nossas plagas, nossas Forças pautam-se por uma agenda profissional, fazendo lembrar o preceito: “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
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