Acordei assustando, ardendo o corpo todo em febre. Uma merda… meu final de semana acabou antes mesmo de começar. É horrível e dolorido sentir na pele, nos ossos, os sintomas de uma doença que, até pouquíssimos anos, quase não afetava os moradores de Blumenau e região. Depois dos diversos tipos de gripe e Covid unirem forças contra meu organismo, um mosquito maldito da dengue resolveu saborear o meu colesterol. Nunca peguei uma “pereba” que deixasse tão ruim, fraco e temendo que a velha da foice na mão poderia chegar, inesperadamente, para levar-me para passear. Proteja-se! Dengue não é brincadeira.
Foi nesta situação de delírio febril, em repouso, que decidir fazer o que boa parte de nossa espécie costuma buscar constantemente. Rezar…e refletir sobre o significado e propósito de meus dias na terra. Acho que é normal, no âmago de um autoconhecimento, frequentemente nos voltamos para o divino, para os deuses que habitam os céus ou as profundezas internas. Atribuímos a eles virtudes e poderes além da compreensão humana, e muitas vezes os invocamos em momentos de necessidade ou desespero.
Confesso que não tenho uma boa relação com a fé. Mas, enfrentando os meus monstros, você acha que eu seria bobo, deixaria de pedir clemência aos deuses, estes seres benevolentes? Eles não capazes de nos proteger e guiar em nossas jornadas terrenas? Firmei as mãos e fui enfileirando pensamentos.
Não demorou muito para certeza surgir: raios, nenhum ser de luz ficará doente como eu. Também são desprovidas das mesmas paixões e desejos que definem a experiência humana. Logo, pensei, os deuses são bons para um lindo carvalho, mas, diferentes de nós, não fazem sexo. E isso deve fazer do paraíso um lugar chato pra diabo.
Temendo que o fogo que anima a matéria deixasse de existir, imaginando quais ferramentas os céus enviaram para mim, ao nascer, segui à esmiuçar cada etapa da minha vida. É difícil a compreensão dos dons e das dádivas que herdamos. Para alguns a bunda e a lua parecem formar um casamento perfeito, cujo os talentos e habilidades excepcionais são frequentemente celebrados, admirados e remunerados. Aqueles que os possuem são reverenciados como portadores de algo divino, que transcende o comum.
No entanto, uma questão inevitavelmente surgiu: os dons são verdadeiramente dádivas? Ou são simplesmente características que nos foram atribuídas sem nossa escolha ou mérito? Vou ao meu exemplo. Tenho a habilidade em escrever e organizar ideias, uma aptidão que muitos considerariam um presente valioso. Mas, e ai? E o faz-me rir, a bufunfa, o dinheirinho na conta?
Pense que em uma briga na rua, por exemplo, “defender-se com palavras é um negócio arriscado”. Robert Greene e Joost Elffers registraram, e eu concordo, que as letras e palavras “são instrumentos perigosos e podem se perder pelo caminho. As mesmas palavras que usam para nos convencer, virtualmente nos convidam a refletir sobre elas com as nossas próprias palavras”.
Ao longo da história, inúmeros escritores, poetas e artistas talentosos enfrentaram dificuldades financeiras e lutaram para encontrar reconhecimento por seu trabalho. A sociedade muitas vezes falha em valorizar adequadamente as contribuições daqueles dotados de talento criativo. Os escritores, em particular, frequentemente labutam em meio à obscuridade, suas palavras perdidas em um mar de informações e entretenimento.
Então, onde reside o valor real dos dons? Será que devemos medir seu significado apenas em termos de reconhecimento ou remuneração financeira? Ou há uma dimensão mais profunda que transcende o mundo material?
Ainda bem que a febre logo baixou e a dengue não venceu meu corpo. A consciência retornou para o lugar e as reflexões pararam de atormentar um próximo dia.
Tarciso Souza, jornalista e empresário
Seja o primeiro a comentar