Opinião | Do Globo de Ouro ao feed: quem manda na soberania brasileira?

Imagens: reprodução

A respiração fica mais lenta, os olhos nem piscam. Você se afunda na poltrona macia do cinema e, por um instante, como que em um coral inverso, tudo vira silêncio. Naquela sala escura, cada um do seu jeito, um coletivo unido em gotas de ansiedade, segura até o mastigar da pipoca para, inconscientemente, não roubar a atenção da cena exibida na gigantesca tela. É mais um blockbuster americano? Não! Desta vez, não! Hollywood precisou engolir suas próprias guloseimas da bomboniere… É Fernanda Torres, é o Brasil, que acaba de ganhar um Globo de Ouro.

Dá um orgulho danado, não é? Ver alguém nosso no pódio: no esporte, na ciência, nos negócios, ou, neste caso, no palco do prêmio mais badalado da indústria cinematográfica. Uma atriz brasileira, contando uma história do nosso porão mais sombrio, é uma vitória deliciosa! E o mais incrível de tudo é que esse feito veio justamente da indústria que há décadas tenta nos convencer de que herói só existe se for homem, usar capa vermelha e falar inglês.

Mas calma, não invadi seu tempo, como alienígenas de ficção científica, para falar só de cinema. Quero pegar carona neste exemplo e discutir soberania. Essa palavrinha complicada, conceito que parece tão distante, como se só tivesse a ver com tanques de guerra e mapas de fronteiras. Quando, na verdade, nossa soberania é tomada todos os dias, por algoritmos mais eficientes que qualquer exército.

Enquanto Fernanda discursava no histórico Globo de Ouro por Ainda Estou Aqui – um filme sobre nossa memória da ditadura –, um harmonizado Mark Zuckerberg escolhia as palavras para anunciar mudanças na política das redes sociais da Meta. Como quem diz: “Ei, Brasil, suas leis são bonitinhas, mas quem manda no feed sou eu.”

“Respeite quem pôde chegar onde a gente chegou”, diria a canção, mas será que entendemos mesmo o que é chegar? E o que é nosso? Soberania não é só geografia. É também alimentar, energética, econômica e, sobretudo, cultural. Diferente da utopia que cantava John Lennon, não vivemos num mundo “sem fronteiras e sem religiões”. Cada bandeira tem seus próprios interesses e, mais do que isso, luta para garantir sua capacidade de reinar com seus recursos.

Marco Aurélio, o filósofo imperador, dizia que o autogoverno é a base da liberdade. Mas como pensar em autogoverno quando nossas escolhas são sutilmente direcionadas por algoritmos estrangeiros? Uma liberdade ditada por dados que induzem ódio, manipulação e delírio coletivo. Uma roda de ratos onde corremos apaixonados por aquele que impõe, de forma disfarçada, seus próprios desejos.

Acemoglu e Robinson, em “Por que as Nações Fracassam”, explicam que países prosperam com instituições inclusivas e soberanas. Mas como prosperar se copiamos tendências do TikTok, nossos jovens sabem mais sobre a culinária francesa do que sobre a mandioca e o feijão com arroz? Quando nas escolas é mais fácil e interessante falar sobre a história da Apple que a do Brasil?

Os EUA exportam sua soberania em pacotes de pipoca e efeitos especiais há décadas. Colonizam o mundo com o dólar e seus filmes. Portugueses navegaram, italianos encantaram com sua arte sacra, franceses dominaram pela gastronomia, japoneses pela tecnologia. Os chineses? Bem, eles estão na palma da sua mão, coletando seus dados enquanto você faz dancinhas para ganhar likes. Até os sul-coreanos estão nos roubando corações com doramas e boy bands. E o Brasil? Continuamos sendo uma colônia emocional e cultural de quem souber seduzir melhor.

Nosso maior desafio como nação talvez seja entender que soberania não se protege só com soldados ou grades em prédios públicos. Avançar as fronteiras do conhecimento, da cultura, da ciência, da indústria e das patentes é essencial. Mas permitimos, como cachorrinhos abanando o rabo para qualquer um com um petisco na mão, que grandes corporações decidam quais leis cumprir e o que será exibido na nossa timeline. Como diz Steven Levitt em Freakonomics, às vezes as respostas óbvias escondem verdades mais profundas.

A soberania não se perde só com invasões ou tanques nas ruas. Ela escorre pelo refrigerante que bebemos, pelo filme que assistimos, pelo aplicativo que usamos para mandar mensagens, pela energia que consumimos e pelo que servimos em nossos pratos.

As grandes potências sabem o que estão fazendo. Da Renascença italiana aos super-heróis da Marvel, tudo é um projeto de domínio pelo encantamento. Incentivos moldam comportamentos. E enquanto aceitamos o que vem de fora, ignoramos o que é nosso.

Fernanda Torres, com seu prêmio, nos mostrou que ainda podemos contar nossas histórias. Cabe a nós decidir se será um momento isolado ou o início de algo maior. Afinal, soberania não é só resistência. É criação, memória, e, acima de tudo, orgulho de quem somos.

Tarciso Souza, jornalista e empresário

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*