“Mas eu tô nem aí, se o traficante é quem manda na favela. Eu não tô nem aqui, se morre gente ou tem enchente em Itaquera. Eu quero é que se exploda a periferia toda. Mas fico indignado com o Estado quando sou incomodado pelo pedinte esfomeado que me estende a mão”. A música de Max Gonzaga, “Classe Média”, é também uma forte reflexão, que a arte torna vívida, do que está em muitos corações enrijecidos, entoando como mantra de existir.
Eu já escrevi outro dia algo assim: não entendo em que parte do tempo perdemos, como sociedade, a capacidade de exercitar a compaixão e tolerância. Acontece que nestes dias boa parte prefere desviar o olhar da miséria que nos cerca, de maneira crescente, nos últimos 5 anos. Ou, quando enxerga, utiliza destes fiapos de sub-humanos, como instrumento que mantém suas bandeiras em pé.
A semana foi como um grito ecoando pelas esquinas sombrias da consciência. As imagens cruéis, em ao menos três distintos episódios, reforçam para o país uma Santa Catarina bastante diferente da sociedade que em sua história recebeu a caridade do Brasil em cada tragédia.
Começou com a notícia de uma procissão macabra, promovida por policiais militares, forçando moradores pobres a marchar de Itajaí a Balneário Camboriú. Uma coisa grotesca, muito semelhante a ações de milícia paramilitar, que agem a revelia do Estado. Como se o convívio com a ferida da pobreza no litoral pudesse ser mais importante do que a dignidade humana. Uma “higienização” cruel que remete a tempos sombrios da história.
Mas, o horror contra a população carente e negligenciada nas ruas continuou ganhando as páginas dos noticiários catarinenses. Surgiram denúncias, com imagens, de uma operação em Florianópolis, onde lixo foi espalhado em pontos distintos da capital do Estado para criar a narrativa de que eram os moradores de rua que sujavam a cidade. Em vez de acolher, o poder público optou por difamar e culpar aqueles que já sofrem. Como se a exclusão e o abandono já não fossem suficientes.
O trágico assassinato de Giovane Ferreira da Silva, um vendedor de balas, ocorrido em plena luz do dia, em um dos supermercados mais movimentos de Blumenau, em frente a uma criança pequena, é o culminar de uma indiferença que parece corroer a alma daqueles que deveriam ser capazes, ao menos, de sentir compaixão.
Os discursos políticos que atacam os moradores de rua, longe de ajudar, só tornam a pacificação da sociedade ainda mais distante. Talvez esta seja a real intenção destes. Além disso, reduzem as chances de encontrar soluções – que os políticos, legisladores e executivos, deveriam apontar – para aqueles que pagam um preço elevado por dificuldades, problemas emocionais, psicológicos, vícios e o desamparo do Estado. Afinal, ninguém chega a uma situação de rua por prazer. Acabar abandonado nas ruas é o último recurso, o fim da dignidade.
Hoje, em Blumenau, segundo os dados do Cadastro Único, o CadÚnico, mais de 20 mil famílias vivem com menos de meio salário mínimo. É possível, de alguma maneira, que alguém nesta situação encontre meios de sonhar em mudar de vida sem o apoio do poder público? Estima-se que a cidade seja o lar de cerca de 400 moradores de rua. E assim a sociedade segue seu curso, ignorando aqueles que foram esquecidos e negligenciados. Apenas uma política de abordagem social e recolhimento voluntário para abrigos, ao que parece, não permitirá o amparo necessário para alcançar a distribuição de prosperidade para todos.
A receita da sociedade em 2023 é perversa: primeiro, tira-se o prazer de aprender, ainda na infância. Depois repreende-se duramente o erro, punindo inclusive por escolhas que não estavam ao alcance do indivíduo. Empregos são negados, e a perseguição continua para aqueles com características específicas. Quando o desespero já corroeu o ser, um trabalho é concedido, mas é tão duro e desumano que não proporciona dignidade. Os salários são espremidos até a última gota de suor, tomando mais de 50% do ganho de um mês inteiro para pagar a moradia. E a outra parte não sobra para nada que não seja o básico alimento, evitando o padecer. Uma eternidade condenada a privação.
Assim, o corpo do indivíduo vagueia sem vida, sem perspectiva, como uma assombração para muitos. Quando tudo é tirado, a humanidade é roubada do vivente, aqueles que já foram gente começam a se assemelhar mais com bichos de carga, de tração. Mas que utilidade teriam, afinal, além de servir aos sombrios interesses de uma casta que nada mais faz do que lucra com a dor daqueles que lutam e jamais vencem? O direito ao sonho é pisoteado e a esperança é negada.
Nós, como sociedade, devemos refletir profundamente sobre esta indiferença e crueldade em relação aos irmãos de rua. Em poucos dias começam as celebrações de fim de ano, de natal, e toda mágica solidariedade que o período impõe. Talvez, assim, possamos finalmente encontrar uma solução, uma maneira de devolver uma chance de recomeço e dignidade.
Como encerra a música de Gonzaga, para parte da sociedade “toda tragédia só me importa quando bate em minha porta. Porque é mais fácil condenar quem já cumpre pena de vida”. Precisamos entender, de uma vez, que não poderemos desfrutar de uma cidade, Estado ou país melhor sem resgatar, estender a mão para nossos irmãos de rua, em vez de empurrá-los ainda mais para a escuridão.
Tarciso Souza, jornalista e empresário
Mande seu texto aos prefeitos, governadores e deputados…pagamos altos impostos e parte deles deveria ser utilizado para este fim…estamos cansados de ser mulas de carga.