Opinião | Eleições Municipais III – Crises político-sociais em permanente vigência

Foto: reprodução

A partir do mundo antigo Aristóteles nos legou o ensinamento de que a política é uma arte. Do Renascimento italiano Maquiavel afirmou peremptoriamente que “o mundo da política não leva ao céu, mas sua ausência é o pior dos infernos”. O filósofo francês Michel Foucault propõe a inversão da clássica tese de Clausewitz que afirmava que “a guerra não é mais que a continuação da política por outros meios” pela máxima de que “A política é a guerra continuada por outros meios”. O que estas expressões sobre a política têm em comum? E o que dizem, ou transmitem para nós brasileiros na atual quadra histórica e social em que nos encontramos? 

Talvez se possa considerar que estas expressões tem em comum o fato de apresentarem a política como uma arte. Mas, o que é arte? Arte é a manifestação da habilidade de conceber, desenvolver, executar uma ação, constituir um objeto que incidem na forma como concebemos o mundo e nos manifestamos nele juntamente com outros seres humanos e a diversidade de formas de vida que o compõe. Disto resulta que a arte tem compromisso com a expressão do belo. Reconhecemos algo, seja uma ação, uma determinada situação, ou mesmo um objeto qualquer como belo, na medida em que tais eventos revelam equilíbrio nas formas, nas proporções, nas cores na adequação ao contexto em que se encontram inseridos. A arte potencializa no ser humano a experiência da fruição do mundo, das relações consigo mesmo e com outros seres humanos. A arte torna o mundo mais acolhedor à condição humana em sua multiplicidade de relações. A arte permite fazer a experiência com a potência da vida que se manifesta em sua pluralidade de formas e cores em nosso entorno. 

A política concebida como arte implica no reconhecimento de que é uma ação exclusivamente humana. Somente os seres humanos dispõem da potencialidade de fazer arte e, portanto de fazer política. A política, assim com a arte não é atividade dos deuses, de anjos, ou de demônios. É atividade exclusivamente humana (em sua condição humana, demasiadamente humana – Nietzsche) na cotidiana afirmação das condições necessárias ao compartilhamento da vida em sua esfera coletiva, do mundo resultante do cotidiano convívio com os demais seres humanos, do compartilhamento dos bens necessários à manutenção da vida humana e, da diversidade da vida em seu entorno e, que se apresentam cruciais para o equilíbrio da biosfera onde se encontram os substratos para continuidade da vida. Ou dito de outra forma, a política como arte da convivência com outros seres humanos e formas de vida não comporta juízo de valor. A política não é boa nem má. É inerente ao ser humano em seus esforços vitais com os demais seres humanos de justificar a existência do mundo, bem como o sentido e a finalidade de sua existência nele. 

Diante do exposto, cabe-nos refletir sobre o que as expressões (presentes nas primeiras linhas deste texto) dizem, ou transmitem para nós brasileiros na atual quadra histórica e social em que nos encontramos. Primariamente é salutar termos presente que a arte da política não comporta dualismos, tais como: “nós contra eles”; “homens de bens que amam o Brasil contra os homens do mau que não amam a pátria”; “nós os crentes em deus contra os ateus”; “nós os capitalistas empreendedores contra os socialistas coletivistas” e vice-versa, bem como uma infinidade de outras máximas binárias que aqui poderiam ser citadas. Estas expressões revelam comportamentos alicerçados em uma compreensão dogmática, antipolítica, deletérias ao exercício da política expressa acima como arte do constante diálogo e negociação em torno da afirmação da condição humana e, a partir dela de um mundo que possa ser acolhedor à vida, à vida humana.

Transformar a política num campo de batalha, a partir de um suposto “nós detentor de uma hipotética verdade”, contra “eles” é destruir a arte da política e, sobretudo restringir as possibilidades de compartilhamento do mundo. Neste contexto já não se trata mais de “fazer política”, mas de promover violência, de sequestrar, privatizar o espaço público, de difamar o outro, o diferente. Disto não resulta que a política seja a enfadonha atividade em que todos concordariam com todos sobre tudo. Ao contrário disto, a arte da política é a intensa atividade do diálogo, da criatividade, da criticidade analítica sobre as mais distintas propostas, de disputas de narrativas, de negociação em torno da afirmação de propostas políticas, que se apresentam comprometidas com a manutenção do espaço público, como locus por excelência do debate político, em que falar a verdade é condição basilar para agir em benefício da promoção do mundo, para as presentes e, sobretudo, futuras gerações. 

A arte da política requer bom senso, sensibilidade para o belo, compromisso com a verdade do discurso público, respeito à coletividade, aos bens públicos, distinção entre interesses públicos e privados. Requer ter ciência de que a riqueza é socialmente produzida e, sob os pressupostos da justiça social é preciso que a sociedade estabeleça regras, normas, leis e instituições para adequada produção e distribuição da riqueza. A arte da política requer que partidos políticos se apresentem como instituições consistentes no contexto de uma democracia representativa. Nesta direção, e por reverso, a arte da política não se estabelece com a proliferação de siglas partidárias desprovidas de ideologia política, de projeto político para a sociedade brasileira em seus âmbitos local, regional, estadual e nacional. Ou seja, o oportunismo político de partidos e políticos profissionais, ou que daqueles almejam tal condição não contribui para conformação de espaço público comum e compartilhado.  Mas, também é preciso considerar que a arte da política não se estabelece, quando indivíduos não reconhecem a importância do debate político para vida da coletividade. A partir de seu mundo privado entendem a política como oportunidade para extorquir candidatos em período eleitoral com favores pessoais, ou mesmo alcançar cargos na administração pública após processos eleitorais.

Ainda nesta direção, é preciso considerar que a política revela-se como antipolítica quando setores da sociedade brasileira sequestram o Estado em função da garantia de seus interesses privados. Quando corporações que se apossam do Estado comprometem a representatividade dos mais distintos grupos sociais que disputam o poder. Quando corporações profissionais passam a se locupletar com altos salários desproporcionais (imorais) frente a 80% dos trabalhadores brasileiros que ganham até dois salários mínimos. Quando  determinados grupos políticos passam a impor avaliação moral sobre outros grupos sociais insuflando seus séquitos ao ódio à política, ao outro indivíduo que porventura expressa posicionamentos políticos divergentes.  No contexto brasileiro dos últimos anos ouvem-se insistentemente nos meios de comunicação, bem como nos discursos de autoridades políticas, religiosas e, até de cidadãos em sua cotidianidade de que há uma polarização política no país.  A questão que se coloca é: “A quem, ou a que grupos interessa alimentar o deletério discurso antipolítico da polarização?” 

Este discurso antipolítico da “polarização” somente pode interessar para aqueles grupos sociais que se beneficiam e que se locupletam da riqueza socialmente produzida, dos bens públicos privatizados, dos altos salários extraídos do tesouro nacional no interior extensivo da sociedade brasileira e que é paga com salários aviltantes, com acesso a serviços públicos de baixa qualidade, com o cotidiano cerceamento do acesso a educação, aos livros (e quando os livros chegam à população são recolhidos, queimados, vendidos, reciclados), a uma vida minimamente digna. 

O discurso da “polarização” tem como objetivos clarividentes dividir os indivíduos. Impedir que se debata a política, que se avaliem as propostas dos partidos e dos candidatos que se apresentam com a promessa da representação política. O referido discurso moraliza, “demoniza”, “cancela” o outro, o liberal, o socialista, o progressista, o comunista, o anarquista, entre outros. Cerceia as condições de diálogo político e o reconhecimento de que tal condição mantém a sociedade brasileira em permanente crise política e social.  No contexto da permanência vigência da crise social e política que se arrasta do Brasil colônia ao Brasil contemporâneo não conseguimos e, provavelmente não conseguiremos afirmar a arte da política como condição inadiável para constituição de um projeto de desenvolvimento nacional soberano. A insistência no discurso antipolítico de suposta polarização política da sociedade brasileira esconde, senão impede o reconhecimento da colonial luta de classes que mantem o Estado, a sociedade sob o controle de determinados grupos econômicos em detrimento do desenvolvimento humano e social brasileiro.

Debater abertamente e livremente a política, concebida aqui como arte da política é o desafio imediato (mais um) que as eleições municipais nos apresentam.  Neste percurso será estratégico demonstrar as falácias dos discursos e candidatos representantes da antipolítica, seus preconceitos, seus moralismos, sua ausência de concepção e projetos políticos, bem como suas fakenews, ou mais recentemente suas freackshows (indicamos aqui o texto intitulado: “Atos lacradores e de cancelamento…” de autoria da Doutora e pesquisadora Graciela Márcia Fochi, disponível no link. O exercício da arte da política tão necessário e urgente entre nós requer um esforço pessoal e social de superação do analfabetismo político. E nesta direção, o poeta alemão Bertold Brecht nos brindou com o atemporal poema: “O Analfabeto Político”. 

O pior analfabeto é o analfabeto político.

Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos.

Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio depende das decisões políticas.

O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. 

Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo.” Disponível no link.

Dr. Sandro Luiz Bazzanella

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