No domingo 27 de novembro de 2024 ocorreu o segundo turno eleitoral em municípios brasileiros com mais de duzentos mil habitantes. Assim, encerraram-se as eleições municipais brasileiras. O que estas eleições revelam para além das questões refletidas nas crônicas anteriores e que compõem esta série? O que estas eleições escancararam? Porém, algum leitor pode nos perguntar: As, as eleições não terminaram? Por que ainda deveríamos refletir sobre elas? Ou, este leitor ainda poderá afirmar: Trata-se agora de “torcer” para que vereadores e prefeitos eleitos façam um bom governo. Ainda nesta direção, haverá eleitores desta coluna que talvez afirmem: “agora vamos cobrar as promessas de campanha”. Ato contínuo haverá quem dirá: “elegemos estes candidatos, mas se não fizeram nada na próxima eleição retiraremos do poder, é simples assim”.
Tais questionamentos e posicionamentos, entre outros tantos possíveis são expressão do cidadão (eleitor) diante da certeza do dever cumprido e, sobretudo da afirmação do direito de votar e ser votado, prerrogativa de uma sociedade que acredita ser democrática. Mas, é exatamente esta crença na democracia representativa justificada no direito do cidadão consumidor de votar que está na berlinda, em situação de decomposição institucional e social. Reflitamos sob alguns aspectos institucionais e sociais críticos revelados pelo período eleitoral:
- A democracia representativa liberal moderna está revelando seus limites teóricos, conceituais e institucionais. Para compreender estes limites é preciso considerar que no Brasil, do período imperial ao período republicano no qual estamos inseridos na atualidade, a primeira dificuldade foi constituir um pensamento liberal que superasse a mentalidade, o ethos escravocrata característico da colônia de exploração que vicejou por mais de três séculos desde a chegada dos portugueses nas terras dos povos tupiniquins e, de uma infinidade de outras nações indígenas. Ou seja, é preciso reconhecer que após o período colonial e, sobretudo no período republicano a partir de 1889 à atualidade foram poucos e curtos os períodos em que a sociedade brasileira pode se apresentar discursivamente como democrática. Nossa história política e social é marcada por constantes golpes promovidos pelas elites econômicas, jurídicas, políticas e sociais com o intuito de retirar dos movimentos sociais, dos setores organizados da sociedade brasileira a possibilidade de constituição e afirmação de um projeto de desenvolvimento nacional soberano e alicerçado na justiça social.
Tal trajetória marcada pela instabilidade política e institucional nos permite considerar, que não sabemos suficientemente do que estamos falando quando afirmamos que vivemos numa democracia, ou equivocamente afirmamos que no Brasil as elites “sempre” teriam se comprometido com a defesa da democracia. Sob tais pressupostos, as eleições confirmam os limites compreensivos em torno das exigências da democracia representativa. Entre estas exigências encontram-se a necessidade do eleitor distinguir as esferas representativas no âmbito do poder executivo e, no âmbito do poder legislativo. Ou dito de outra forma, que o poder legislativo (vereadores, deputados estaduais, federais e senadores) é o poder que assume a condição por excelência de representatividade do eleitor e, por decorrência da sociedade, frente a suas reivindicações de participação nas decisões públicas tomadas pelo executivo municipal, estadual e federal. Desta condição, decorre a necessidade no período eleitoral do eleitor ter acesso às propostas partidárias do candidato relativas às demandas da comunidade, bem como de ter ciência da forma como o candidato se eleito exercerá o seu mandato observando as prerrogativas de representatividade.
Mas, os indícios demonstram que o processo eleitoral foi marcado por uma profusão de candidatos ao cargo de vereador e, que diante dos limites do período eleitoral (45 dias), inviabilizou que candidatos tivessem condições de expor a público e debater o teor de suas propostas, bem como seu compromisso de representatividade em relação a interesses da população. Assim, a eleição para vereador (legislativo) transcorreu nas sombras da campanha para prefeito (executivo), desprovida das condições mínimas para que os candidatos a vereador justificassem suas candidaturas no contexto da democracia representativa. Sob tais condições, torna-se prática comum entre os candidatos a vereador a distribuição de benesses financeiras, o pagamento de contas de luz, de energia elétrica e, tantas outras situações deste gênero, culminando com a compra efetiva de votos.
Tais práticas de campanha por parte de candidatos e partidos compromete irremediavelmente a possibilidade de compreensão das exigências da democracia representativa de matriz liberal. Ato contínuo, a ausência de compreensão suficiente entre a maioria dos eleitores, conduz ao ódio contra a democracia liberal, expresso em argumentos do gênero: “Os políticos em época de campanha prometem e depois não cumprem”; alguns são mais diretos: “É só promessa”; “São todos corruptos”; “Somente pensam no próprio bolso”; “Querem entrar lá na prefeitura para roubar”; “Só um governo militar pode resolver esta situação”. Tais expressões entre outras revelam a incompreensão de parte significativa dos eleitores e da sociedade com as exigências da democracia representativa favorecendo a emergência de candidatos e políticos que se apresentam como “antissistema”; “antipolíticos”; contra a “velha política”. Detentores de discurso agressivo contra a política e os políticos tradicionais, tais políticos e candidatos ganham mentes, corações e arrastam multidões de eleitores ansiosos por mudanças políticas estruturais que “resolva definitivamente o problema”, mesmo que não consigam reconhecer as causas do que identificam como problema.
Nesta arena tumultuada, apresentar-se como progressista já é o suficiente para mobilizar a ira das multidões de eleitores sedentos por redenção política prometida pelo líder antissistema. Até mesmo definir-se como um conservador apresenta-se problemático. É preciso que ligeiramente se reafirme como “conservador de direita”, caso contrário leva “pau”. Tal condição é reveladora dos limites da democracia representativa liberal. Mais do que isto é preciso ter sensibilidade e vigilância analítica para ter presente que as pavorosas experiências totalitárias das primeiras décadas do século XX (fascismo e nazismo) nasceram em contextos de decomposição das instituições políticas e sociais constitutivas da democracia liberal representativa de época.
- A redução dos partidos políticos a meras siglas desprovidas de ideologia político-partidárias. É fundamental que um partido apresente de forma consistente qual sua concepção de Estado, de administração pública, de cuidado com o espaço público, de cuidado com os bens públicos, bem como qual seu compromisso com a democracia em sua forma representativa. Caso tal partido tenha críticas à democracia representativa liberal, que apresente outras formas de representação, que podem se expressar em propostas de democracia participativa direta, em fóruns de consulta popular, na multiplicação de conselhos representativos de segmentos sociais, entre tantas outras formas e experiências possíveis.
O que as eleições municipais nos apresentaram foi a derrocada dos “Partidos Políticos”. Meras siglas. Tarefa árdua, cansativa distinguir que siglas eram de extrema direita, de direita, de meio-extrema direita, de centro, de meio-centro esquerda, de esquerda. Discurso unânime das siglas aos eleitores era o cuidado com a vida das pessoas (biopolítica), saúde, educação, segurança, emprego, lazer, entre outros. O esforço das siglas era demonstrar aos eleitores que seus candidatos se eleitos “fariam mais e melhor”, ou então que o município merecia “mais”. Desapareceu dos discursos das siglas e dos candidatos referências ao zelo e promoção do debate público em torno dos bens públicos, de acesso e participação dos diversos segmentos sociais em torno das questões que interessam à comunidade, à sociedade local. A participação popular, a descentralização política das decisões públicas não encontrou abrigo no interior das siglas partidárias, cujo compromisso prioritário, ao que tudo indica é com a empregabilidade de seu séquito de apoiadores. A derrocada da instituição dos “Partidos Políticos” é forte indicio da decomposição da democracia liberal representativa e, com ela a emergência da violência discursiva e política que se encontra espraiada do plano local ao plano nacional. Desprovidos de “Partidos” com ideologias definidas nos encontramos diante da fragilidade das siglas partidárias e seus candidatos aventureiros, dos coaching da política, da mentira (fake news) emporcalhando o espaço público, locus por excelência do debate político.
- As eleições municipais revelaram ainda a extensão da sociedade individualizada e espetacularizada em curso na atualidade. Tudo indica que o término do período eleitoral coincidiu com seu imediato esquecimento. Ou talvez, há que se considerar se em algum momento mesmo durante o período eleitoral a sociedade individualizada expressou de fato interesse pela verborragia desprovida de conteúdo ideológico partidário proferido pelos candidatos representantes das respectivas siglas partidárias em disputa no pleito eleitoral. É preciso acompanhar com atenção este movimento, submetê-lo à investigação científica, à análise filosófica, sociológica e, da ciência política, entre outras ciências para verificar se de fato estamos diante de uma despolitização da política, do desinteresse da sociedade espetacularizada de produtores e consumidores individualizados em relação às questões da política. Ou seja, noutro sentido, se o acentuar do comportamento de indiferença dos indivíduos com a política indica , noutra direção iniciativas e experiências possíveis e necessárias para a revitalização da política.
A incomoda questão que se apresenta é a necessidade de compreendermos o fenômeno da indiferença política diante das questões que envolvem os interesses vitais da comunidade, da sociedade, da vida em comum. Quando fenômeno assemelhado se manifestou nas primeiras décadas do século XX, o resultado foi o consumo monumental e pavoroso de vidas nos campos de batalha, a violência, a destruição generalizada do mundo compartilhado. O resultado também se apresentou na “solução final” levada adiante pelas fábricas da morte instaladas nos campos de concentração dos nazistas, de seus administradores e cumplices que consumiram mais de seis milhões de vidas, culminando nas duas bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki consumindo instantaneamente milhares de vidas humanas, mas também deteriorando a vida natural presente naquele território. Todos estes eventos pavorosos culminaram com a bomba atômica como expressão tácita da violência que deriva da indiferença entre indivíduos, povos e lideranças políticas mundiais diante do compartilhamento do mundo. Ou dito de outra forma, a indiferença política promove o descomprometimento dos indivíduos com o compartilhamento do mundo. Alcançado este ponto o que se apresenta é violência, destruição, massacre, perda do sentido comum e comunitário da vida.
- Diante do exposto, as eleições municipais indicam que todo e qualquer político eleito, seja em âmbito do poder executivo, ou do poder legislativo que não se comprometer com esforços de revitalização da política, do espaço público, estará implicado no aprofundamento da indiferença política, no esvaziamento da política e, por decorrência também será responsável direta ou indiretamente (por omissão, por silêncio, por eficiência e eficácia de administração política) por promover a emergência de fenômenos pavorosos de desprezo pela vida em sua diversidade de manifestações, de proliferação de violência, de barbárie, que destroem as condições de possibilidade de habitar um mundo comum, compartilhado. Neste sentido, argumenta Agamben: “Hoje não há na terra um chefe de Estado que não seja, nesse sentido, virtualmente criminoso. Qualquer um que hoje vista o triste redingote da soberania sabe que pode ser um dia tratado como criminoso por seus colegas. E certamente não seremos nós a nos compadecermos dele. Porque o soberano, que consentiu de bom grado em se apresentar com a veste de policial e de carrasco, mostra agora, no fim, sua originária proximidade com o criminoso.”
Ainda nesta direção, as eleições municipais demonstraram uma excessiva voracidade por parte das siglas partidárias e de seus candidatos em estabelecer acordos locais, regionais e estaduais em função das eleições nacionais de 2026. Em princípio não haveria nada de anormal neste fenômeno, afinal tratar-se-ia da conformação de blocos partidários representantes de segmentos da sociedade brasileira, com ideologia e projeto de desenvolvimento nacional aproximado com vistas à disputa do executivo e legislativo nacional para conformação de seu programa de governo. No entanto, reitere-se que se trata de siglas partidárias movidas por interesses dispersos; pela ausência de ideologia partidária; siglas partidárias dispostas a fazer negociações dos bens públicos com grupos sociais e econômicos difusos; ou ainda, siglas partidárias atravessadas por discursos políticos messiânicos e, que fundem interesses religiosos com questões políticas. Ou seja, trata-se de siglas partidárias que abandonaram todo e qualquer pudor diante das exigências da política como meio sem fim, que articula e promove entre os seres humanos o compartilhamento do mundo. Ou dito de outra forma, trata-se de siglas partidárias que reúnem em torno de si interesses que ao que tudo indica não se vinculam ao debate público sobre a necessidade de afirmarmos um projeto de desenvolvimento local, regional e nacional integrado e articulado às necessidades e desafios geopolíticos em curso na atualidade.
As eleições municipais povoadas por estas siglas partidárias e seus candidatos desprovidos de projeto político a ser debatido publicamente parece nos empurrar para um cenário de governos municipais que reproduzirão velhas mazelas conhecidas do âmbito local ao âmbito nacional, quais sejam: patrimonialismo, fisiologismo, nepotismo; parcialidade na administração pública; incorporação em massa de apoiadores em cargos públicos com generosas comissões, entre tantas outras práticas nefastas que a partir da promulgação da constituição de 1988 a sociedade brasileira procurou combater. O cenário pós-eleições municipais se apresenta delicado e, com potencial de aprofundar o esvaziamento da política e, por decorrência promover a violência e a barbárie que necessariamente destroem toda e qualquer possibilidade de relações de poder constitutivas do mundo e do compartilhamento com vistas à promoção da vida.
Nesta direção, faz todo o sentido a percepção do pensador da Escola de Frankfurt Herbert Marcuse, que assim se manifesta: “mas há situações em que o divertimento, a troça e o drible perdem todo o sabor, tornam-se insípidos e idiotas, em quaisquer termos, porque são meros testemunhos de impotência política. Sob o fascismo de Hitler, a sátira silenciou (…).” Ou seja, diante do avanço da violência no espaço público, na política, em suas mais diversas formas, seja ela por meio da disseminação da mentira, na incitação ao ódio a partidos e políticos, no cerceamento do debate político, no xingamento nas redes sociais, entre tantas outras formas, desaparece o bom senso necessário à qualificação do argumento e do próprio debate político e, por fim desaparece o humorista, o humor, a alegria de brincar com o inusitado das situações e dos equívocos da política. Quando isto acontece é sinal de que o embrutecimento político, o esvaziamento da política, a perda do bom senso no compartilhamento do mundo humano alcançou uma condição de significativo risco de manifestação de propostas fascistas e totalitárias de mundo, cujos resultados se apresentam na dor, no sofrimento e, por decorrência na destruição de um mundo politicamente compartilhado.
Talvez a lição mais importante do vazio político paradoxalmente presente nas eleições municipais, se apresente na urgência de devolver a política ao uso comum. Ou seja, a tarefa da política como arte da negociação da palavra entre seres humanos é promover experiências que devolvam o mundo humano ao uso comum, ao uso da comunidade. Se as experiências societárias anteriores demonstram que todas as vezes que a democracia representativa de matriz liberal entra em colapso os custos humanos são brutais é preciso intensificar experiências de democracia participativa direta, descentralizar a política, devolver à comunidade o uso comum da política. A política que vem virá cotidianamente de experiências democráticas lúdicas, de promoção da alegria comunitária advinda da arte do comércio da palavra comprometido com o reconhecimento do outro, com a preservação do espaço público, dos bens públicos necessários à manutenção e promoção da vida, da coletividade.
A descentralização da política – e não se confunda com descentralização de atos administrativos do Estado governado por siglas partidárias a serviço de interesses políticos e econômicos de grupos minoritários, que sequestraram a arte da política transformando-a em estratégia instrumental e violenta de vigilância, controle e domínio de indivíduos e populações compreendidos como “capital humano” ou ainda como “capital social” – implica no fato de devolver aos indivíduos a possibilidade de debater com seus pares em âmbito local os rumos comunitários onde a vida é compartilhada cotidianamente. Trata-se de multiplicar experiências de uso comum da política que transcendam a captura institucional, profissional, mentirosa e produtora de violência política. É preciso um basta na violência institucionalizada que destrói a política. O silêncio, a omissão, o pequeno e mísero cálculo de benefício próprio com a manutenção deste estágio de decomposição política é pago com a destruição do mundo humanamente compartilhado. O genocídio de Gaza em curso é a pavorosa condição que se apresenta a todos nós resultante desta condição política instrumentalizada que se encontra dentro de nossas casas. E concluímos novamente com o filósofo e jurista Giorgio Agamben: “Política é a exibição de uma medialidade, o tornar visível um meio com tal. Ela é a esfera não de um fim em si, nem dos meios subordinados a um fim, mas de uma medialidade pura e sem fim como espaço do agir e do pensamento humano.”
Dr. Sandro Luiz Bazzanella
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