Era uma vez, em São Paulo, uma chuva de mais ou menos 30 minutos em uma sexta-feira que seguia normal até aquele instante na maior metrópole do Brasil – e uma das maiores do mundo. Acredite, começava naquele instante um show de horrores, estendendo o drama por mais de 80 horas de escuridão. Uma tempestade? Sim, mas não apenas da natureza. Parecia que um dilúvio de negligência, da falta de zeladoria, da gestão privatizada – que se mostrou um fiasco – estava invadindo a capital. Enquanto rajadas de vento sopravam apenas em pontos específicos do Estado, o blecaute estendeu-se por diversas regiões da cidade, deixando milhares de paulistanos às escuras e questionando a eficiência das privatizações e zeladoria urbana.
Os ventos lá em São Paulo, terra de concreto e desafios, mal ultrapassaram, na média, os 60 km/h. Foi o suficiente para derrubar árvores, postes e escancarar uma série de dificuldades de gestão antes, durante e após as chuvas. O governador, Tarcísio de Freitas (PR), culpou as árvores, a Enel – empresa do governo da Itália, responsável pela energia – responsabilizou o inesperado, e o prefeito Ricardo Nunes (MDB) – de deveria primar pela zeladoria da cidade – achou uma boa ideia implantar um novo imposto aos moradores para enterrar a fiação.
Em Santa Catarina, os incontáveis episódios climáticos parecem que prepararam melhor o Estado para este novo tempo de desafios decorrentes da natureza. Uma intempérie, como a vivida por paulistas e paulistanos, são frequentes por aqui, sem, no entanto, resultarem em apagões prolongados.
A cidade que nunca dorme, paradoxalmente, repousou em uma escuridão prolongada. Contrastando essa realidade, em terras catarinenses a estatal Celesc brilha como um farol de eficiência – uma das melhores do país. Até junho de 2023, conforme apontam os resultados da companhia, a população do Estado conviveu com apenas 4,02 horas de interrupção por consumidor, com uma Frequência Equivalente de Interrupção de 2,88 vezes no mesmo período. Uma proeza e tanto em meio aos desafios climáticos que enfrentamos. Um exemplo de que a gestão pública pode ser eficaz quando bem executada.
O contraste entre a estatal eficiente e a empresa privada desastrosa ressoa como um alerta, ecoando nos corredores da política. O desastre em São Paulo, após um capricho climático de trinta minutos, reacendeu um debate muito importante, que traz à tona a discussão sobre a privatização de serviços essenciais: água, esgoto, energia, transportes, educação, saúde.
Em Blumenau, o Partido Novo, favorito para vencer as eleições municipais de 2024, empunha a bandeira, nos discursos dos seus representantes – especialmente na Câmara de Vereadores -, da privatização. A promessa é de eficiência, economia e modernidade. Mas, como a privatização se traduz na realidade local? Entregar setores essenciais à mão invisível do mercado é o melhor caminho?
As propostas privatistas oferecem o desejo de vender setores como o Samae e até mesmo a compra de vagas em escolas, creches, hospitais, diminuindo o tamanho do quadro médicos, professores e educadores do município. Como se demonizar servidores públicos, expurgando-os da gestão, tivesse o poder de fabricar milagres e transformar a realidade de uma comunidade.
Contudo, as experiências que vivemos em Blumenau com a privatização do esgoto e do transporte revelam resultados, para dizer o mínimo, questionáveis. Hoje, menos de 50% da população usufrui do serviço de coleta e tratamento de esgoto após 13 anos de privatização da rede. O transporte público é marcado por transtornos, gerados por conflitos de desrespeito aos direitos dos trabalhadores, falta de manutenção dos equipamentos, ou corte de linhas em regiões de baixa demanda… e os cidadãos arcam duas vezes com prejuízo: uma vez pela carteira – pagando a elevada tarifa – e novamente pelos cofres públicos – que subsidia a empresa vencedora da concessão.
A venda dos serviços essenciais parece um caminho certo para o conflito em três pontas. De um lado a força do dinheiro exigindo retorno aos investidores, do outro a sociedade que deseja mais qualidade no que é primordial para qualidade de vida e, por fim, o poder público preso em contratos que, geralmente, são mal elaborados e dificultam a cobrança do básico nas operações.
A crise elétrica em São Paulo desvelou as entranhas descuidadas da gestão municipal com a zeladoria urbana, um espetáculo de desleixo que atormentou a população. Embora esta seja uma responsabilidade inteiramente das cidades, em Santa Catarina a Celesc destaca equipes para mitigar riscos, fazendo a poda de árvores que ofereçam preocupações para o funcionamento da rede. O fato de contar com profissionais de carreira pública permite também manter um histórico de soluções rápidas, evitando que o caos se estabeleça.
Em meio a essa dança de público e privado, entre responsabilidades sobre a retirada vegetação dos postes, o Brasil começou a discutir ainda a necessidade de passar toda rede elétrica das cidades para sistemas subterrâneos. A sugestão de enterrar fiações, embora esteticamente agradável, como já ocorre na rua XV de Novembro, esbarra em desafios consideráveis, como dificuldade de expansão, maior risco de manutenção, impacto das enchentes e custos proibitivos. Se todos os imóveis da rua mais charmosa de Blumenau estivessem ocupados e demandassem um tantinho a mais de energia, por exemplo, é possível que enfrentássemos um enorme problema para reforçar a carga elétrica da região.
Também é preciso recordar que o último dia 29 de outubro marcou os 20 anos de um apagão histórico em Santa Catarina. Uma falha durante a manutenção da rede que atravessa a Ponte Colombo Salles mergulhou Florianópolis nas sombras por dois dias. O que demonstra a complexidade de manter a rede elétrica em estruturas abaixo do nível das ruas.
Assim, entre tempestades e apagões, a reflexão persiste: zelar pela cidade é uma responsabilidade coletiva, uma dança entre o público e o privado, onde cada passo conta na busca por soluções duradouras. A crônica da privatização oscila entre o aplauso e o vaiar, enquanto as cidades, como atores, se debatem sob os holofotes das escolhas políticas e administrativas. Ao que parece a luz – ou melhor, a falta de luz em São Paulo -, ora brilhante, ora vacilante, lembra de pensarmos bem sobre o destino que traçamos para nossas cidades.
Tarciso Souza, jornalista e empresário
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