Opinião: formação cultural e sócio-histórica brasileira

Quais são as raízes que indicam as grandes linhas de força na formação da sociedade brasileira? Que fatos históricos são importantes no estudo de instituições fundamentais nesse processo: o sistema colonial? o sistema escravista? Os regimes autoritários do século XX? As práticas sociopolíticas? As razões do abandono da escravidão dos índios pelos portugueses e a opção pelos africanos? A manutenção da unidade territorial brasileira em contraposição à fragmentação das colônias espanholas? A difícil transição do regime autoritário para o democrático, nas últimas décadas? Desde os primeiros passos do Brasil independente, ainda monárquico, passando pela República, até os movimentos de rua recentes? São questões fundantes que inquietam o pensamento sobre a sociedade brasileira.

No entanto, a crítica é o sal da vida, é uma parte importante, às vezes essencial, da nossa compreensão sobre as coisas, depende da leitura crítica sobre o que aprendemos a respeito. Assim é, que em relação à diversidade e à inclusão, a compreensão destes temas contemporâneos pode ser amplificada. Desta maneira, os textos mais apologéticos sobre eles necessitam ser confrontados com a crítica, forma de apropriação intelectual e de engajamento ético e moral. Ao largo de outras críticas que se somam, o valor civilizatório desses temas é indiscutível.

Entretanto, o voluntarismo na sua defesa gera um determinismo moral indutor de distorções. A empatia por minorias e excluídos é compreensível, mas costuma sobrepor juízos de valor ao rigor científico. Ao fazê-lo, generaliza a explicação, ignora parte da realidade e todo o processo histórico, além de jogar uns contra os outros e o indivíduo contra a sociedade civil.

Recentemente os pesquisadores Luca Bussotti e Laura António Nhaueleque, ambos de Lisboa, Portugal, publicaram um artigo com o seguinte título: A invenção de uma tradição: as fontes históricas no debate entre afrocentristas e seus críticos. A obra analisa “o uso das fontes históricas no debate entre a corrente filosófica do Afrocentrismo e as críticas que esta recebeu. O Afrocentrismo, principalmente na versão elaborada por Asante, propõe a revisão radical e a superação do paradigma eurocêntrico. O alicerce desta proposta é a ideia de que o pensamento filosófico e científico surgiu em África, nomeadamente na civilização egípcia, considerada “negra”, de acordo com a lição de Anta Diop.

As provas de matriz histórica utilizadas pelos afrocentristas foram largamente contestadas. O artigo pretendeu evidenciar a forte ligação entre elaboração filosófica, aparato ideológico e “invenção” duma tradição histórica por parte do Afrocentrismo, cujo uso instrumental das fontes entra em choque com as regras básicas da ciência histórica.”[1] Sendo assim, é preciso ter cuidado com determinadas estratégias de poder, que podem ser usadas através de dispositivos racistas.

Outro ponto que merece atenção é que a maioria das pessoas (em geral, brancas, classe média alta, com ensino superior) repetem a ideia de que 50% da população brasileira é preta. É possível que sejam pessoas que estão reproduzindo um discurso de militância, oriunda da realidade estadunidense e impondo o mesmo modelo cultural, sócio-político, a realidade brasileira.

Existe uma possível contradição que advém do inciso IV da lei 12.288/2010, e que está em total discordância com a definição de autodeclaração de pardos usada no manual do IBGE. Os mestiços são 46%, autodeclarados pardos, que se mostram como um fenótipo de quase todo brasileiro, mestiço, participante de uma cultura antropofágica, conceito este cunhado por Oswald de Andrade. A sociedade civil brasileira que se identifica como parda acabou não produzindo militância, e daí foram invisibilizados por uma coalizão entre o movimento “negro” (composto também por muitos mestiços que se dizem “negros”) e pela classe média  alta (quase toda branca).

Muitas dessas pessoas de classe média alta não vivenciam as realidades suburbanas, periféricas, populares, onde as realidades e categorias usadas não são as mesmas dos colegas militantes pretos e intelectuais da classe média alta e branca.

É normal que o engajamento ético e moral seja legítimo como processo civilizatório. Se isso é normal e gera eficácia na seara da política e Educação, os resultados podem ser questionáveis. Na política, várias interpretações são confrontadas, relativizadas, até gerar a síntese da lei e da política pública.

O que se vê nos conteúdos bibliográficos e curriculares universitários e escolares, onde o engajamento ético e moral costuma se impor de modo homogêneo, assume ares de explicação universal. É quando a parte vira o todo e uma conjectura dá o tom exclusivo às explicações, às vezes sofisticadas, mas sempre questionáveis.

Ao denunciar o racismo, a homofobia e o machismo, o engajamento ético trata uma realidade parcial como sendo o todo e despreza a escala que distingue a solidariedade da intolerância. Considera falsa toda afirmação de convivência pacífica entre a sociedade e os grupos identitários. Mesmo quando não explicita, sugere que a sociedade como um todo é estruturalmente racista, machista e excludente. Isso é que significa generalizar uma explicação, negando que parcela importante da sociedade não se encaixa nessas narrativas homogeneizantes.

A professora Celina Alcântara Brod, Universidade Federal de Pelotas, escreveu para o caderno Estado de Arte, do Jornal Estadão com o seguinte argumento: “Albert Bandura, psicólogo canadense, denominou que tal fenômeno parte de um profundo desengajamento moral. Bandura mostra que a violação do certo e errado, sem a perda do autorrespeito, pode ser alcançada através de um desligamento moral seletivo (…)

Bandura relata o exemplo do comandante nazista Amon Goeth que, enquanto escrevia uma carta ao pai, cheia de compaixão e carinho, assassinava friamente judeus nos campos nazistas. É justamente porque a moralidade é nestes casos suspensa que indivíduos conseguem cometer atrocidades e ainda conviverem consigo mesmos.”[2] Podemos dizer que engajamento moral e ético, por sua parcialidade, na verdade é um desengajamento moral.

É claro que a defesa à diversidade e à inclusão tem um forte componente moral, aliás, expõe um conflito entre resistências reacionárias e ímpetos progressistas. É, exatamente por isso, que revelaria seu caráter ético, isto é, a proposição de uma escolha entre preceitos morais. Por ser uma opção ética, deveria compreender uma questão estética. Em outras palavras, diversidade e inclusão precisam ultrapassar a justificação moral e serem entendidas como parte da beleza do desenvolvimento civilizatório, contida no processo histórico.

Entretanto, por um duplo preconceito contra o conservadorismo e o liberalismo clássico, as narrativas homogeneizantes desprezam o processo histórico ocidental de progressiva afirmação de direitos e conservação de valores. Na Sociologia crítica, instituições tradicionais, sejam formais (leis) ou informais (costumes), são frequentemente identificadas com a dominação opressora e a repressão sobre os corpos e as minorias.

E como são identificados os opressores? Como heterossexuais ocidentais. A despeito da denúncia contra os malefícios dos opressores, o curso civilizatório tem sido o palco permanente de debates, resistências e avanços que geraram as instituições contemporâneas do Estado de bem-estar e de direitos. É nas nações ocidentais que as políticas de inclusão têm avançado, por meio de instituições tão democraticamente sofisticadas que garantem, inclusive, o direito de insultá-las. E, conquanto a história seja marcada por sofrimento e privações, é no Ocidente que os valores de igualdade, liberdade e justiça mais avançam.

É pelo menos desde as preocupações dos filósofos liberais do século XVIII, como Montesquieu, Burke e Adam Smith, que temas como os direitos das minorias e o combate à escravidão são pronunciados. Fundamento das instituições democráticas atuais, deve-se ao liberalismo clássico e ao conservadorismo, bem como o aperfeiçoamento das instituições. Todavia, o argumento do tempo presente é que reconhecê-lo esbarra em preconceitos que mal se escondem abaixo da epiderme dessas narrativas de crítica permanente ao caráter “opressor” e “alienante” das instituições ocidentais.

Predomina, de fundo, um pressuposto a iluminar essas narrativas: a conjectura do dominante-dominado, opressor-oprimido, verdugo-vítima. É a partir dela que tais narrativas sociológicas se delimitam, influenciando a Educação, tornando as análises enfadonhas e as conclusões previsíveis e preconceituosas. Aprisionados na teia ideológica da conflagração permanente, seus replicantes retroalimentam acriticamente o igualitarismo utópico em repulsa à sociedade culturalmente diversa e possível do dia a dia.

Nessa perspectiva, toda convivência interracial pacífica é mentirosa, todo crescimento econômico aumenta a desigualdade, todo empreendedorismo é destrutivo, toda meritocracia encobre a injustiça, individualismo é egoísmo e todo o crime individual é culpa da sociedade. Essa é a ótica antiliberal e anticonservadora, em que o indivíduo é vítima, a sociedade culpada e a responsabilidade fulanizada. E, ao retirar a responsabilidade, retira-se o que o indivíduo tem de mais humano: a autodeterminação, cuja abdução o desumaniza.

O que os autores dessas narrativas não enxergam é a dimensão cooperativa e real da sociedade. Expurgam a possibilidade de que jovens leitores e alunos do sistema educacional percebam que, para além dos conflitos e injustiças, a Sociedade em que vivemos é melhor do que foi aos nossos pais. Na lida de defender os injustiçados e denunciar o racismo estrutural, esta sociologia dos excluídos sugere que indivíduos são bons selvagens, mas a sociedade os torna egoístas. E o resultado é um tanto paradoxal para essa premissa rousseauniana, já que conclama uma solução hobbesiana: Desde que em mãos certas, é o Estado protetor que deve estabelecer a relação direta com o indivíduo atomizado, dispensando a sociedade, que seria estruturalmente incapaz de ajuda mútua.

É o próprio ocaso da República e o limiar do despotismo democrático, tão temido por Tocqueville há mais de 200 anos, em Democracia na América. Por trás da denúncia de um racismo estrutural e machista, está a inferência de que a sociedade é incapaz de solidariedade com os diferentes. Estes contestadores das instituições, os adeptos da narrativa da desigualdade estrutural deslegitimam o Direito que, afinal, assegura a diversidade e a inclusão. O que desprezam é a cultura da sociedade e suas instituições informais (valores e crenças), considerando-as retrógradas, ao invés de reconhecê-las como a fonte do desenvolvimento histórico, de onde emergem, dialeticamente, os novos direitos.

[1] Fonte: https://www.scielo.br/j/his/a/6nxr4VZpQnyZr6Whptt8V7P/?format=pdf&lang=pt

[2] Fonte: https://estadodaarte.estadao.com.br/metamorfose-palavra-odio-celina/

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