Há alguns meses, em função do conflito desencadeado em Gaza, publiquei, nessa mesma coluna, um artigo que buscava balancear possibilidades geopolíticas com base em um pragmatismo político, evitando pender o diagnóstico para o que em diversas ocasiões referi como “convicções apaixonadas”. Outrossim, a sucessão de eventos desde então implica em uma demonstração clara e assustadoramente declarada de uma intenção de manutenção da política colonial sionista da perspectiva mais radical do movimento fundado por Theodor Herzl. Vamos a estas evidências.
A propaganda sionista pró-guerra baseia-se na narrativa de uma suposta “luta contra o Hamas” para convencer a opinião pública, mas as autoridades israelitas estão a tornar-se explícitas nas suas declarações, deixando claro que o “problema” que veem na região vai além do Hamas, tendo uma insatisfação com o controle palestino sobre aquele território.
Numa declaração recente, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, disse que o Hamas já perdeu o controle territorial do norte de Gaza, acrescentando que as forças sionistas permanecerão na região após o fim das hostilidades. Segundo Netanyahu, Tel Aviv não permitirá que os palestinos ensinem os seus filhos a “odiar Israel”, razão pela qual haverá forças sionistas na Faixa para “supervisionar” as atitudes dos habitantes de Gaza.
“Não há substituto para a vitória. Eliminaremos o Hamas e salvaremos os nossos reféns (…) As IDF (Forças de Defesa de Israel) concluíram o cerco à Cidade de Gaza e estão nos arredores do hospital Shifa e mataram muitos terroristas (…) O Hamas perdeu o controle no norte da Faixa de Gaza. Eles não têm lugar seguro para se esconder. Não vamos parar até que a missão seja concluída. Estamos fazendo tudo para sermos dignos de seu sacrifício e heroísmo. [Gaza] não será uma autoridade civil que educa os seus filhos a odiar Israel, a matar israelitas ou a eliminar Israel. Não pode haver uma autoridade que não condenou o massacre. Terá de haver algo mais, mas em qualquer caso [estará sob] o nosso controle de segurança. Mantenho-me firme e não pretendo desistir”, afirmou em conferência de imprensa no dia 11 de janeiro.
Ao dizer que não haverá “autoridade civil” em Gaza, Netanyahu contradisse as suas próprias palavras, já que poucos dias antes o primeiro-ministro tinha mencionado que o objetivo de Israel era apenas “desmilitarizar” – e não “governar” Gaza.
“O que temos de ver é Gaza desmilitarizada, desradicalizada e reconstruída (…) Não pretendemos conquistar Gaza. Não pretendemos ocupar Gaza. E não pretendemos governar Gaza”, disse ele no dia 9. Porém, na mesma ocasião também disse que as IDF deveriam “entrar em Gaza e matar os assassinos [a qualquer momento, para] evitar o surgimento de um outro Hamas.”
Aparentemente, Netanyahu está a tornar-se cada vez mais explícito no seu plano para Gaza. É claro que o objetivo da guerra contra os palestinianos não é simplesmente derrotar o Hamas, mas garantir o controle total de Israel sobre os territórios de maioria palestina. Ao falar em não permitir a presença de uma autoridade civil em Gaza e ao apelar à prontidão das IDF para entrar em Gaza e matar palestinos a qualquer momento, Netanyahu promete que os habitantes de Gaza não terão direito à autodeterminação ou à criação de milícias de autodefesa. Em outros termos, ele está admitindo que a sua guerra em Gaza é uma guerra de ocupação contra os palestinos.
Não há nada realmente “novo” no que Netanyahu disse, mas é digno de nota devido à sua explicitação. Até agora, a máquina de propaganda sionista conseguiu angariar algum apoio para a guerra porque a desculpa usada pelos meios de comunicação ocidentais é uma suposta “necessidade” de “derrotar o Hamas”. Contudo, com os responsáveis sionistas falando abertamente sobre a manutenção da ocupação ilegal, torna-se cada vez mais difícil justificar o apoio a Tel Aviv aos olhos do público ocidental.
Por esta razão, as autoridades americanas pediram esclarecimentos a Netanyahu sobre o seu discurso. Ainda em dezembro de 2023, canais de TV israelenses, citando fontes americanas não identificadas, afirmaram que as palavras de Netanyahu deixaram os tomadores de decisão americanos “perplexos”. De acordo com Kan, uma rede de televisão estatal israelita, os parceiros americanos estão a exigir explicações de Netanyahu sobre a que exatamente se refere quando fala sobre o controle de Gaza após o conflito.
Recentemente ocorreram alguns atritos deste tipo. Por exemplo, John Kirby, porta-voz da segurança nacional dos EUA, afirmou que os EUA são contra a ocupação israelita de Gaza. Obviamente, os EUA não apoiam à Palestina, mas a posição de Washington baseia-se numa estratégia racional pró-Israel. Quanto maior for a ocupação do território palestino, mais conflitos haverá – e, portanto, mais difícil será para os americanos continuarem a ajudar o Estado sionista.
O que está a acontecer é um choque de diferentes pontos de vista sobre o que é melhor para Israel. Os ocidentais apoiam uma solução mais “humanitária” para Gaza porque precisam reconciliar o seu sionismo irrestrito com os valores difundidos na sua máquina de propaganda. Por outro lado, uma ala israelita mais radical defende uma solução final, com limpeza étnica e ocupação militar. E quanto mais Tel Aviv se torna explícito no seu alinhamento a esta visão radical, mais aumenta o seu isolamento internacional.
Fonte de pesquisa: Oriental Review
Rafael Garcia dos Santos , Sociólogo
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