Meus olhos escuros fazem uma bagunça enorme com as cores. Distinguir além das primárias azul, amarelo e vermelho é, para mim, uma confusão mental. Os meios-tons, as misturas exóticas, faço por dedução, um instinto para compreender o padrão definido. O que vejo, desde sempre, sem que exista nuvem alguma para cegar, nem mesmo nos felizes momentos da vida, é o que minha pele representa.
Sou resultado de uma mistura bem brasileira e tenho muito orgulho disso. Em meu corpo o coração embala o sangue de africanos, portugueses, índios… de gente do mato, da cidade, do campo. Que foi arrancada de sua tribo, escravizada, que prosperou a partir da construção das gerações anteriores. Pais, mães, avós e um plural de simplicidade que – meus ancestrais certamente não possuíam este desejo – abusou da paleta de cores e, de uma maneira discreta, camuflou a pele que tenho, permitindo ocupar espaços que em um outro tempo era um sonho distante para eles.
Pode parecer fácil abordar um tema relacionado a sua história. Acontece que resisto sempre… tocar em feridas nunca é legal. Encontrar ouvidos sinceros e acolhedores são difíceis. Abraços e ombros dos seus parecem um destino bem mais seguro. O temor que carrego é justificado por um convencimento pessoal que somente parte pequena dos que não precisaram enfrentar o preconceito de cor compreende a bandeira de uma humanidade.
Generalizando, o mundo parece louco. Falta empatia e talvez um esforço para compreender o que o outro vive. Estar no lugar do outro, respeitar as diferenças, as insatisfação ou satisfações, dores, escolhas. Tudo isso compõe um série de obstáculos que afastam a construção do entendimento que existem muito mais dificuldades para um lado do que o outro.
Faça um exercício rápido: quando criança teve uma vida legal? Encontrava exemplos de pessoas de sucesso que inspiravam você a ser igual? Eles eram parecidos com você? Agora pense que você está crescendo em condições extremas e distintas que viveu. Compreende que lá também pode existir a felicidade?
O ponto que desejo chegar é simples… Passou do tempo, mas necessitamos abrir os olhos para ver que o contexto social precisa ser respeitado. Nenhum movimento verdadeiro, seja de classe, credo, cor ou gênero, quer sobrepor sua visão de universo aos outros. O desejo é por respeito, igualdade, humanidade, representatividade para que as oportunidades dos dias de sol façam sentido para todos.
Tenho a certeza que sou um privilegiado. Meus pais fizeram muito mais que podiam para retirar dos olhos tudo que não permitisse ver além dos muros. O apoio deles foi fundamental para caminhar, escalar, cair, levantar tantas vezes.
Venho de uma família bastante grande. São mais de 20 tios e tias que tiveram uma média de 3 filhos. Desta imensidade, fui o primeiro a cursar e completar o ensino superior (não, nunca foi cotista, que fique claro para uma discussão futura), em estar em lugares e ocupar uma série de espaços que pouquíssimos chegarão lá.
Apesar de eu conseguir alcançar boa parte dos objetivos que busquei, esta não foi uma tarefa fácil, sem tropeços ou encontros desagradáveis até os dias de hoje. Por mais de uma vez tive oportunidades negas por minha cor. Tantas outras fui abordado por policiais sem motivo algum. Já tive amizades rejeitadas por pais de colegas que entendiam que “eu não ser o tipo de gente” que eles esperavam. Também precisei aprender a superar o enviesado olhar de alguém da família de algum relacionamento que tive.
Acho que nunca abri esta página para ninguém. Quando menino a reação que tinha, ao ser julgado por minha cor, era utilizar a parte áspera da esponja de lavar louça para ver se consegui “ficar mais branco”. Evitava tomar sol esperando, sei lá, que a melanina desbotasse. Gostava de Michael Jackson pelo som que fazia, por chegar ao topo do mundo e também, por conseguir trocar de cor. Foi lá na adolescência que aprendi a gostar de blues, jazz, de B.B. King, Chuck Berry, Miles Davis, John Coltrane, Charlie Parker, Ray Charles e tantos outros.
Lembro, vividamente, de Will Smith em “O Maluco no pedaço” e o quanto ele foi importante nesta formação de representatividade na juventude. Também mantenho na memória o momento de uma das mais duras humilhações que passei, em um dos primeiros empregos formais, ao errar a gramática de uma palavra. Foi uma mulher da minha cor que surgiu para amenizar a dor e apresentar Machado de Assis (que fiz um esforço imenso para plagiar, sem o mínimo sucesso, sua maneira de escrever) e Luís Gama, que espelhei meus passos para parte da vida adulta.
Veja, eu realmente considero que fui privilegiado por conseguir chegar a um certo lugar e ocupar uma posição importante, para mim, na sociedade. Ainda assim, não raras são as vezes que entro, por exemplo, em um comércio e sou discriminado. Ou, que pessoas entram em minha loja e não aceitam o meu atendimento. Também, por mais de uma vez, presenciei o olhar de desprezo, do tipo que fazemos quando deparamos com um bicho peçonhento ou algo asqueroso, para aqueles que, como eu, não se encaixam no padrão imaginado pelo opressor. Em momentos assim, a estrutura que você possui ao seu lado é o alento. Hoje, minha defesa e força está no apoio incondicional de minha esposa.
Honestamente eu gostaria de ter a resposta, a cura para este problema social que não é apenas local. Em diversos destinos que visitei é possível perceber tal situação. Alguns em maior ou menor grau. Nos Estados Unidos, em todas as cidades que estive, a separação de negros e brancos era absurdamente gritante até a última vez que visitei.
É por isso que histórias como do ator Chadwick Boseman, da figura do personagem Pantera Negra que ele interpretava, comovem uma multidão. Que o sucesso de um negro na F1, quebrando todos os recordes, importa tanto. De um líder mundial, que possui traços de aproximam os oprimidos do poder significa uma imensa quebra paradigma.
Sim, vidas importam. Sim, negras importam. Sim, esta luta é para sempre.
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