Recentemente acadêmicos de instituição de ensino superior brasileira desenvolveram aplicativo nomeado: “Meu Deputado”. Por meio do aplicativo “Tik Tok” uma jovem faz apresentação do referido aplicativo, destacando inicialmente sua versatilidade. Ele pode ser acessado enquanto o indivíduo aguarda sua chamada no consultório. Na fila do banco. No transporte público, no ônibus, no metrô. No trânsito congestionado no inicio da manhã, ao meio-dia, ou no fim da tarde. Enfim, “onde você desejar”. “Quando você quiser”. Numa linguagem informal, a apresentadora destaca que o aplicativo é “topizera da balada” (!?). Tudo indica que a apresentação do aplicativo é direcionada aos jovens, aos “descolados”, e a outras categorias que se identificam com a referida expressão.
Ato contínuo, o vídeo passa a destacar as “funcionalidades” do aplicativo. “Ele reúne informações do portal da transparência e coloca de um jeito mais bonitinho pra gente ver”. “Ele mostra os gastos mês a mês de cada um dos mais de 500 deputados federais que a gente tem”. “Entendeu? Mostra a presença deles nas seções da Câmara, se eles foram, se eles não foram”. “Oh faltou 2. Faltou 15 de 16 … isso acontece”. “Mostra também como eles votaram: maioridade penal, a favor ou contra; lei dos transgênicos, a favor, ou contra”. “Mostra lá tudo, como a pessoa votou, quantas vezes foi e, quanto que gastou e, em quê e, ainda tem o e-mail se você quiser falar: o filhinho tá faltando à beça, tá gastando isso com combustível?”
É… Tempos difíceis, senão sombrios. A primeira vista, a proposta é convidativa. Convencerá levas inteiras de indivíduos ávidos pela “moralização da política”. Submetidos a constantes ininterruptos discursos advindos de veículos de comunicação de massa, da internet, de redes sociais, de comparações entre eficiência da ação empresarial versus burocracia e ineficiência estatal, a opinião pública anseia pela imposição de metas de eficiência da atividade parlamentar.
Essa visão parece fortalecer o discurso de um estado pesado, lento, e de mundo empresarial rápido, dinâmico, se não forem instrumentos técnicos e olhar constante da sociedade, esse ser rastejante não avança. Esta concepção da atividade parlamentar, ou dos “políticos”, como expresso pelo senso comum, encontra-se disseminada em discursos que advogam o fim dos vencimentos de vereadores e, por extensão dos salários de deputados, sejam eles estaduais e/ou federais. E pasmem, ou não, são raros discursos desta natureza advogando pelo fim dos salários dos Senadores da República.
Vejamos então, o Senado é segmento do Poder Legislativo, tem como fim representar os interesses dos entes federados (estados) constitutivos da República Federativa do Brasil, senadores eleitos tem mandatos de 8 anos, possuem assistentes, secretários e motoristas exclusivos com orçamento previsto para cada atividade e cada pessoa em sua equipe. Deputados federais, a princípio, são representantes eleitos pelo povo para legislar, fiscalizar e compor a Câmara dos Deputados, que junto com o Senado formam o Congresso Nacional, e compõem o Poder Legislativo.
As vezes esperamos demais dos seres humanos … República Federativa… é muita coisa para quem tem representantes ruins em diversos países do mundo, e para quem convive com um presidente – Mito. O Mito mitando, mita a sua condição de Mito. É isso e basta. Está de bom tamanho. Sob tais pressupostos, por um lado o aplicativo “Meu Deputado” pode ser considerado a expressão de um duplo movimento no interior de sociedade de massas individualizadas, expressão esta que parece se apresentar como contradição em termos.
Porém, vejamos. No primeiro movimento trata-se constatar que nos encontramos inseridos no interior de sociedades compostas por indivíduos submetidos à lógica ensimesmada da plena produção e do pleno consumo. Indivíduos que conduzem suas vidas a partir das pressões cotidianas do crédito e do débito. Os débitos contraídos na luta pela sobrevivência implicam na entrega diuturna das energias vitais por meio de empregos formais, de atividades produtivas informais, ou mesmo de trabalhos precarizados (entregadores de comida, de roupas, de peças mecânicas, de remédios, de cosméticos, de sangue, de cabelo…) para compor os créditos necessários a mais um dia, um mês, ou mesmo mais algum tempo de vida.
O imperativo da dívida ao qual o indivíduo está umbilicalmente vinculado do nascimento à morte é o que orienta a desgraçada dinâmica individualizada de sua vida errante e busca de crédito. Milhões de indivíduos em busca desesperada de crédito. É preciso ter fé (crédito) no amanhã. Cantou um certo Milton que essa gente que não vive, apenas aguenta, precisa ter força, precisa ter graça e gana; sempre, claro que nos dizendo para sair desta condição, mas … No interior desta sociedade de massas individualizadas há uma profunda deterioração de diversas agendas, dentre elas, a agenda política.
Não há espaço público para ser compartilhado. Não há bens públicos e comuns a serem preservados. Há somente a “garantia da lei e da ordem” por parte do poder soberano, para que os indivíduos possam locomover-se (ir e vir) na lógica da produção e do consumo. E quando há algum espaço público, não aprendemos a nos relacionar com este espaço com liberdade, com zelo, como algo nosso. Para nossa sociedade da pressa e da propriedade privada, o que é público para nós, não é de todos, o que é público para nós, não é de ninguém, não tem dono, grande erro!
A perda ou não existência da compreensão do que é público, ou mais especificamente da importância da política, ou mesmo do que “é política” se apresenta nas expressões utilitaristas: “Para que “servem” os partidos políticos?” Para que “servem” os políticos? Ato rasteiro e contínuo expresso em respostas do gênero: “Não “servem” para nada!” “Políticos são “todos” ladrões”! “Não tem político honesto”! “A política é só sujeira”! … Aqui é preciso novamente considerar que tais percepções não são gratuitas.
Observe-se em curso as denúncias de compra de votos de deputados no Congresso Nacional para aprovação da “PEC dos precatórios vinculada ao famigerado “Orçamento Secreto”, operado pelo Poder Executivo em parceria com o Presidente do Congresso Nacional. As toscas respostas cotidianas denotam generalizações. Indivíduos inseridos na lógica degenerativa da agenda política em curso, da agenda pública, do espaço público, raciocinam de forma instrumental e contábil. “Políticos são nossos empregados”; “somos nós que pagamos seus salários”; devem prestar contas do que gastam, de suas presenças, ou ausências no congresso.
Observe-se que a propaganda para divulgação do aplicativo “Meu Deputado” reverbera tal condição. Não se apresenta na peça publicitária o convite para que o eleitor procure se inteirar dos projetos em debate na câmara dos deputados. Ou mesmo de verificar quais as justificativas dos deputados de seu estado para votar a favor ou contra determinado projeto. O próprio aplicativo foi configurado para apresentar os mais de quinhentos deputados federais por ordem alfabética.
Não agrupa os deputados por “Partidos Políticos” ao qual se encontram vinculados. Desconsidera a instituição Partido Político, sua ideologia (se é que tem alguma), sua proposta política para a sociedade brasileira. Nomeia. Personaliza “O Deputado” fulano de tal, como se ele agisse politicamente desvinculado dos grupos de interesse que o elegeram para a defesa de tais interesses. Desconsidera Deputados eleitos por movimentos sociais, por grupos populares de pressão pelo alcance e garantias de direitos sociais. O aplicativo também não agrupa os deputados por bancadas, como por exemplo: “Bancada da Bala”; “Bancada dos Ruralistas”; “Bancada dos Evangélicos”; Bancada do Agronegócio”; “Bancada dos Banqueiros”, entre outros.
Ainda nesta direção, ao abrir o aplicativo o usuário se deparará com a primeira informação vinculada aos gastos do deputado. Ou seja, ao oferecer esta informação como prioritária, o aplicativo promove o aprofundamento da despolitização da atividade parlamentar induzindo os indivíduos a considerar os custos de manutenção do deputado. Mas, mesmo neste âmbito, o aplicativo não descrimina os gastos: salário do deputado? Salários dos assessores? Passagens áreas? Aluguel de carro? Alimentação? Plano de saúde? Auxílio Paletó? Auxilio Vestido? Etc… ? Após a informação dos gastos se o indivíduo tiver tempo e paciência poderá acessar os projetos em que o deputado votou contra, a favor, ou se absteve. Assim ordem alfabética para nomes, e valores gastos para números representam caracterizações que não priorizam o sistema de ideias presente na organização da atividade política.
O segundo movimento no interior das sociedades individualizadas de massas de plena produção, consumo e de expropriação da vida pela dívida reside no fato do aplicativo “Meu Deputado” se apresentar como o “dispositivo” que facilita o acesso, o acompanhamento e vigilância da atividade parlamentar, ou ao menos do “meu deputado”. Ou seja, numa sociedade de indivíduos em que “time is money”, os aplicativos otimizam o uso e, consumo do tempo de que se dispõe. E se considerarmos o argumento de que a atividade política do deputado não é algo determinante na vida cotidiana, na luta pela sobrevivência dos indivíduos, então um aplicativo que permita consultar o “meu deputado”, enquanto espero para ser atendido no posto de saúde, enquanto aguardo no ponto de ônibus, na estação do metrô… é uma excelente iniciativa (para não usar o termo informal “sacada”).
Consultado o aplicativo nestes retalhos de tempo disponível, o indivíduo poderá acompanhar a ação do seu deputado. E ato contínuo se ficar insatisfeito com o desempenho do “seu deputado” poderá enviar e-mail ao mesmo… Espera-se que o sucesso do aplicativo “Meu Deputado” na intensificação da democracia “5G”, possa motivar outros empreendedores no desenvolvimento de aplicativos, tais como: “Meu Senador”; “Meu Presidente”; “Meu Filho do Presidente”; Minha Primeira Dama Esposa do Presidente”; “Meu Guru do Presidente”; “Meu Jegue da Economia”; “Meu Prefeito”; “Meu Vereador”; “Meu Governador”; Meu Presidente da Associação de Moradores”, “Meu …. sei lá…” Quem sabe até retomar o exército de cidadãos ligados diretamente ao presidente para dizer sobre os preços do supermercado?!
Evidentemente não desconsideramos o impacto, os desafios e, as oportunidades que a internet, as redes sociais apresentam para as instituições políticas, para o exercício da democracia representativa, para o diálogo entre indivíduos eleitores e representantes políticos, sejam membros do Poder Legislativo, ou membros do Poder Executivo e, até mesmo a interlocução entre Poder Judiciário e sociedade civil organizada. Mas, o que se faz necessário refletir é o fato de que aplicativos desta natureza (Meu Deputado) se apresentam como a expressão de uma sociedade de nuances fascista.
Uma das características do fascismo é a destruição do espaço público e, consequentemente do debate político em torno das questões públicas, dos bens públicos, dos direitos sociais e coletivos. Assim, o fascismo se caracteriza pela afirmação do personalismo político. É a figura do líder político intimamente “conectado” com os indivíduos que pertencem ao seu “curral” eleitoral. Desprezam-se os Partidos Políticos, as instituições políticas, as lideranças políticas comprometidas com movimentos sociais, como questões comunitárias. Fazem parte da velha política.
O fascista separa em ordem alfabética (ou por tema?!) e números e transforma gente e ideias em itens a serem monitorados para avaliar descarte ou não. O fascista consistente anuncia ao povo, as seus liderados, a boa nova da nova política. Aquela da salvação nacional. Aquela que vai livrar os patriotas do monstro perverso do socialismo e do comunismo devorador de criancinhas e vovozinhas indefesas … Os comunistas são perversos, estão infiltrados na história da “chapeuzinho vermelho”, somente a nova política e suas Damaris para livrar o povo do lobo mau do comunismo, do socialismo, do sindicalismo, da ideologia de gênero, da doutrinação generalizada que acontece nas escolas, nas universidades, nos salões de baile da terceira idade, e é preciso nas filas, nos consultórios, enquanto se espera ônibus ou metrô, nas migalhas de tempo do estar sozinho, vigiar.
Para os indivíduos ensimesmados no interior de sociedades massificadas pela produção e consumo, destituídas do espaço público, descrentes de iniciativas de cooperação, de debate político amplo na construção de consensos, que possam promover um projeto social, político e econômico comunitariamente compartilhado o que resta é assumir uma atitude de “empresário de si mesmo”, encarando os representantes políticos, sejam eles vinculados ao poder executivo, ou mesmo ao poder legislativo como meros empregados.
É preciso vigiá-los, controlá-los de todas as formas possíveis, pois a corrupção é seu modus operandi. O empresário de si mesmo, o indivíduo produtor/consumidor “acredita” que se cada um cuidar, vigiar, xingar seu deputado o “nosso querido presidente” poderá governar tranquilamente, sem incômodos e incompreensões por parte daquelas minorias barulhentas, que o rotulam de genocida, fascista, mentiroso, negacionista, miliciano, entre tantas outras qualidades. Vigiemos enquanto eles dormem.
No fim dos tempos, que ao que tudo indica se caracteriza pelo fim da política, do espaço público, de debate político em torno dos bens comuns, de também podermos estar um pouco sozinhos, de poder descansar e estar um pouco à toa .. o que sobra são os aplicativos… “Aplicativos do mundo, uni-vos” .… (ou unam-vos?!)
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