Este ano, a cena do Natal parece despida da esperança que deveria ser seu símbolo. Mais de dois mil anos após o nascimento que deu origem a essa celebração, a região onde tudo aconteceu revive um drama que nunca cessou. Invadida pelo Estado de Israel, hoje liderado por um governo de extrema direita, a Palestina foi devastada por uma guerra sem trégua. Só em 2024, estima-se que 19 mil crianças palestinas morreram em Gaza, vítimas desse conflito brutal, 44% do total de vidas perdidas. Como lembra Eduardo Galeano: “Nenhuma tem a honestidade de confessar que eu mato para roubar.”
E, ainda assim, aqui estamos, prestes a comemorar o Natal. Há algo que me comove nessa data, especialmente a ideia de um Natal simples. O Jesus dos Evangelhos nasceu em uma Palestina do primeiro século, uma terra que já sofria sob o peso da ocupação militar romana. O poder político da época era legitimado por uma aliança inescrupulosa entre líderes religiosos e o império. E, em meio a esse cenário de opressão, o Deus todo-poderoso escolheu um estábulo como palco para o nascimento de seu filho.
A cena do primeiro Natal é carregada de simbolismo. Para os cristãos, ela aponta que o coração da mensagem cristã deve pulsar junto aos pobres, aos marginalizados, aos fracos e aos doentes. A história do menino que nasceu sem um lugar adequado para vir ao mundo lançou as bases do princípio da fraternidade universal, um ideal que, séculos depois, influenciaria a doutrina dos direitos humanos, ao lado do liberalismo e do socialismo.
Aliás, os direitos humanos modernos são, de certa forma, uma tradução secular dessa ideia: todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos porque foram criados à imagem e semelhança de Deus. Não importa a cor, a religião, o idioma ou o gênero.
Em meio ao luto e à destruição, ecoa na minha memória a frase de um engenheiro agrônomo palestino que, junto com estudantes da universidade, entrevistei este ano. Ele nos explicava os horrores da guerra: “Nós sobreviveremos, assim como resistimos aos romanos, aos britânicos; resistiremos a esses também.” Que a força e a resiliência do povo palestino possam nos inspirar neste Natal. Mas, acima de tudo, que não percamos a capacidade de nos indignar e resistir.
Dr. Josué de Souza, professor e cientista social
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