No mês de julho repercutiu muito o “antissemitismo de Bolsonaro” com ecos contínuos nos principais veículos de imprensa do país. E isso, por consequência, me incutiu a efetuar uma velha reflexão que já desenvolvi em publicações anteriores, a de que essa analogia da figura de Jair Bolsonaro com o fascismo e até mesmo com elementos nazistas apenas desviam a atenção a respeito do seu verdadeiro perfil político.
Não raro o presidente brasileiro Jair Bolsonaro é descrito como um “fascista” ou um “ultra-nacionalista”. Contudo, ele não é nenhuma dessas coisas, uma vez que ele nem ao menos é nacionalista.
Se retrocedermos alguns meses, lembraremos que isso se intensificou depois que o ex-secretário especial da Cultura Roberto Alvim fez um discurso parafraseando Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda da Alemanha Nazista. Em função desse episódio, muitos não tiveram mais dúvida alguma e se convenceram definitivamente de que estamos sob a égide de um regime fascista.
Alguns especialistas, principalmente pesquisadores outsiders, não atrelados à fundamentação teórica usual da Ciência Política e das Ciências Sociais em geral, por sua vez, têm ressaltado como Bolsonaro e sua equipe usam táticas da “alt-right” americana, incluindo ironias e memes. Comentários ofensivos e explosivos são assim usados para desviar atenção de escândalos de corrupção e outras questões. Por exemplo, quando questionado sobre o eventual envolvimento de seu filho Flávio Bolsonaro com as milícias, o presidente respondeu de forma tão inesperada quanto exótica, atribuindo ao jornalista que o questionava uma “cara de homossexual terrível”, mas que, apesar dessa “aparência”, não o acusaria de sê-lo e, através dessa retórica tosca, embora chamativa, afirmava que as coisas não são necessariamente o que parecem. Mais uma polêmica se consolidava e uma discussão sobre homofobia balizou o debate político no país (Bolsonaro afirmou ter sido mal interpretado) – enquanto um grave evento envolvendo a família do presidente e o crime organizado era analisado de forma secundária.
A performance do ex-secretário Alvim, de maneira similar, teve o tom certo de ambivalência, desde que se conte com o cinismo necessário para conceber um álibi ou o que os ingleses chamam de “plausible deniability” (negação plausível), termo esse “criado pela CIA durante o governo de John F. Kennedy para descrever o poder que a instituição tem para negar qualquer envolvimento com escândalos durante a sua administração”, conforme trecho do popular site de pesquisas, Wikipédia. Lohengrin de Wagner tocando como música ambiente? Música clássica de qualidade unânime, tão somente. Mas e os trechos do discurso que lembram tanto Goebbels? Só uma coincidência? A base bolsonarista objetou questionando os críticos sobre o que havia de errado com o conteúdo propriamente dito do discurso, além de terem insinuado que estes, eventualmente seriam contrários aos esforços do governo em “ promover a cultura nacional”, ou financiar e premiar óperas e música erudita (o Brasil tem tradição de música erudita e conta com vários compositores, além de Carlos Gomes e Villa-Lobos, embora Alvim aparentemente tenha predileção por Wagner).
Ah… mas e o fascismo de Bolsonaro? Primeiramente é preciso definir fascismo pelo o que de fato é, não com base no adjetivo acusatório utilizado politicamente nos mais diversos contextos e matizes. “Fascismo” é definido academicamente como uma ideologia que combina ultra-nacionalismo, corporativismo e anti-liberalismo – sendo o nacionalismo sua principal característica. É pertinente argumentar, todavia, que se que o projeto do ex-secretário Alvim de criar concursos nacionais com prêmios para produções artísticas nacionais talvez tenha sido até agora a única tentativa de criar alguma política pública nacionalista (para o bem ou para o mal) no atual governo. E é fato que Jair Bolsonaro, ex-militar, outrora alardeou algumas posições de nacionalismo (econômico) em diversos momentos de sua extensa (sim, bem extensa) trajetória política. Entretanto, ele não tem feito nada disso nem como presidente eleito e nem mesmo como candidato a presidente. Ora, seu governo deseja privatizar a Petrobrás, o que é execrado tanto para nacionalistas relacionados com a esquerda quanto para os relacionados com a direita (basta elocubrar sobre o que o falecido Dr. Enéas acharia disso). Outras estatais também estiveram, ou estão em uma lista de privatizações, o que tem gerado vários protestos da parte de trabalhistas e nacionalistas (o presidenciável Ciro Gomes é o mais notório elemento a se posicionar de forma contrária) que veem nisso um ataque contra a soberania e aos interesses nacionais.
Também está registrado, assim como assumido, que Bolsonaro já declarou que a Amazônia “não é nossa” (em 2018), o que configura da mesma forma uma anátema para qualquer nacionalista. Há ainda o famigerado episódio em que o presidente prestou continência à bandeira dos EUA durante um discurso em Miami em 2017 – outro gesto (sem precedentes) que foi igualmente bastante criticado por nacionalistas. Até mesmo Lula (que não se notabiliza por posições nacionalistas), à época, aproveitou para dizer que jamais havia visto, tampouco presenciado um presidente prestar continência à bandeira dos EUA.
Em outro evento lamentável em todos os aspectos imagináveis, enquanto o Museu Nacional ardia em chamas em 2018, enquanto o país lamentava a destruição de um patrimônio de sua História, Bolsonaro se limitava a dizer: “Já está feito, já pegou fogo, quer que faça o quê?”. Não se trata, desta feita, de um líder que se ufana do Brasil e exalta sua cultura nacional, em verdade, se dá o extremo oposto. O mesmo vale para questões econômicas.
Por meio de uma análise não muito minuciosa, ao menos no que concerne ao discurso oficial, nenhum presidente anterior foi mais pró-EUA e pró-Israel do que o atual é – ao ponto de potencialmente prejudicar interesses brasileiros. A decisão de transferir a Embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém (projeto condenado inclusive pelas principais igrejas cristãs), causou um enorme desconforto entre generais e diplomatas, haja vista que poderia onerar o processo comercial e as relações históricas entre o Brasil e seus aliados árabes. Bolsonaro, encurralado, teve que retroceder, mas não sem demarcar sua postura diplomática com a abertura de um redundante “escritório de representação” em Jerusalém. Visivelmente a postura diplomática do governo federal possui uma alta carga ideológica sem uma razão que a explique, recentemente, por exemplo, os cidadãos americanos foram isentados de visto – brasileiros, por sua vez, continuarão precisando pedir visto para viajarem aos EUA.
Para sintetizar, Bolsonaro rotineiramente faz declarações polêmicas – para não dizer repulsivas e ofensivas. Ele nomeou para o alto e médio escalão de seu governo vários indivíduos sem experiência ou qualificação e francamente ineptos (o próprio Alvim era tido por alguns como mentalmente instável mesmo antes de sua performance como Goebbels). Bolsonaro se mostra enviesado no que diz respeito ao meio ambiente, à política econômica (insistindo num neoliberalismo radical no momento em que o neoliberalismo está em agonia de seus últimos vestígios nos países desenvolvidos) e à política externa. Porém, é preciso destacar com veemência, “fascismo” ou mesmo “nacionalismo” não são respostas adequadas para interpretar seu governo. Se misturarmos Margaret Thatcher, Ronald Reagan e uma dose de nostalgia do ditador chileno Pinochet (já que nosso próprio regime militar foi bem mais intervencionista e nacionalista do que o regime Bolsonaro/Guedes), dá para se ter, através de um exercício abstrato de comparação, uma vaga percepção de qual é realmente a ideologia do atual presidente do Brasil. Acrescentemos a isso a herança udenista brasileira de cunho anti-nacionalista, temos basicamente um “neoliberalismo conservador”, com uma roupagem mais irregular e mais cínica (dissimulada), como já foi visto antes na América Latina, apenas, dessa vez, mais domesticado.
Poderemos pensar a respeito de outros detalhes que nos levariam para outras interpretações, mas esses detalhes me parecem pouco determinantes. Me refiro a coisas como o ambíguo relacionamento de Jair Bolsonaro com membros de grupos neointegralistas (toscos, e minúsculos), expediente análogo ao relacionamento antes exercido por Donald Trump com a “alt-right” americana. Por vezes são feitos acenos para eles e isso faz com que se sintam muito importantes e se encham de esperanças, mas não passa de encenação ou mero acordo para apoio futuro (ainda que ínfimo).
Por fim, Bolsonaro e sua estrutura propagandística podem até usar um pouco da estética e da simbologia nacionalistas, mas fica nisso. O que há no Brasil nesse exato momento não é o governo de um fascismo imaginário (ou criptofascista), é antes o exercício de um neoliberalismo cínico, revestido com elementos e bravatas conservadoras e rasamente patrióticas.
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