Opinião | O eleitor cidadão

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Se a política é a arte do possível, como tem sido conceituada, cabe considerá-la cada vez mais um exercício de fuga diante da realidade, principalmente nesses tempos de teatralização da vida pública, povoada por atores que recitam ladainhas decoradas e publicitários interessados em embalar os perfis no celofane de um ilusionismo falso.

Quando um mago da política-artifício se coloca no papel de Deus, ao dizer que elege fulano, beltrano ou sicrano, escancara-se o modelo da política como “império dos signos”, refletida na subordinação das ideias à maneira de aparecer na televisão. Pior é anunciar que, na eleição de outubro, prefeitos e vereadores estarão em currais pertencentes a Lula e Bolsonaro, como se estes fossem donos de rebanhos. E, mais, que os eleitores não têm autonomia para escolher candidatos e dependem, cada vez mais, da orientação dos vaqueiros do pasto.

Há contingentes eleitorais, vale lembrar, que se guiam pelas mãos de “patrocinadores”, com seus papéis de fomentadores de ódio, raiva, vingança, e, sobretudo, interessados em ver o país rachado em duas bandas. Mas o que se observa é uma crescente camada de conscientização. Que puxa o sistema cognitivo das populações para a esfera da racionalidade, fugindo de pressões emotivas.

Não é dignificante para as instituições políticas transformar a emoção em ferramenta de impostura. Urge atentarmos para a significação da política, enquanto instrumento para atender aos reclamos da sociedade. Candidatos de partidos e ideologias devem ser compromissados com o ideal do bem-estar, ao se utilizarem de técnicas para vencer os pleitos, e adotar um código de conduta que abrigue valores como ética, verdade, franqueza, objetividade, transparência. Tal escopo, infelizmente, acaba corroído pela instrumentalização da política.

Reconheçamos: a esperteza, o vale-tudo, a dramatização, os recursos artificiais, a hipocrisia e a insinceridade têm sido a tônica da cultura política, no ciclo da sociedade pós-industrial. A política e seus meios inspiram a personalização do poder, propiciando intensa competição utilitarista entre atores. O marketing, nessa esteira, serve ao princípio maquiavélico: “os fins justificam os meios”. E o palanque da política acaba sendo o palco do teatro, do espetáculo, de dramas e comédias.

Como lembra Roger-Gerard Schwartzenberg, em “O Estado Espetáculo”, o espectador é convidado a “purgar suas paixões” por ator interposto, identificando-se com o herói, suas aflições e angústias. Apesar dos avanços da racionalidade, essa ainda é a realidade da política em nossos dias: a arte dos sentimentos forçados, fabricados, principalmente em tempos eleitorais. É o ambiente com que já estamos nos defrontando. Muitos candidatos serão tratados como sabonete, como se este produto, bem aplicado, deixasse perfis banhados de ética e pureza.

Os cerca de 160 milhões de eleitores brasileiros, aptos a votar em outubro, deverão ser envolvidos pela “feitiçaria” que a publicização política haverá de construir nos próximos tempos. Como podemos evitar a embrulhada construída pela atmosfera da propaganda eleitoral a ser incrementada a partir de meados de agosto?

Primeiramente, identificando os pontos de saturação. Que podem estar na cosmética exagerada sobre os perfis, operação que apresenta geralmente três graus de dissimulação: quando o perfil desaparece sem ser notado ou quando se impede que o tomem como tal qual é; quando o candidato exibe alguns sinais, querendo ser o que não é. Ora, “nenhum homem, por maior esforço que faça, pode acrescentar um palmo à sua altura” e alterar o pequeno modelo que é o corpo humano, diz a bíblia. Mesmo que se use a engenharia de artimanhas do marketing.

Por isso, para desmascarar a ilusão, desvendar o artifício e reencontrar a realidade dos atores, é oportuno resgatar a base da racionalidade, o poder crítico dos cidadãos, distinguindo emoções passageiras de sentimentos reais. Reafirmamos: haverá certamente candidatos que colocarão sobre a cara a máscara da dor, não sendo esta, necessariamente, a dor. Histriões aparecerão em ambientes climatizados de emoção e musicalmente envolvidos em baladas emotivas.

Mas o país está cansado de promessas mirabolantes e de puxadores de promessas. Temos de repudiar as palavras lacrimosas de oportunistas, as fantasmagorias dos “feiticeiros” de plantão. A comunidade política carece de palavras realistas, não da magia enganosa de sentimentos inventados para chegar aos corações eleitorais. Urge rejeitar perorações grandiloquentes ou desenhar a cosmética de faces condoídas por tragédias.

Há, de fato, cerca de 50 milhões de brasileiros que vivem em estado deplorável. O país mostra sinais de anomia e degeneração de valores. Mas tem uma base sobre a qual pode navegar com segurança. Chegou a hora de apontar caminhos e soluções. De banir a instrumentalização da catarse coletiva para tirar dela proveito. Chegou a hora de não mais comprar gato como lebre. Diante da dramatização, às vésperas da campanha, o eleitor haverá de vestir sua roupa de cidadão.

Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

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