Opinião – O liberalismo e as prioridades do Estado

O liberalismo tem sido mencionado nos discursos cotidianamente se prestando às mais variadas noções. E, com o início das campanhas políticas, esse termo está ainda mais na mira do que em outros tempos.

Diferentemente de outras compreensões políticas, às quais, em geral, são mais atribuídas ao “outro” do que assumidas explicitamente, no caso do liberalismo muitos pensadores e  atores políticos se identificam de modo orgulhoso por se dizerem liberais. É um rótulo que, em grande parte, costuma “cair” bem a quem o adota, em especial é bem visto por setores da economia, por quem lida com investimentos e por empresários.

Contudo, esse grupo, o dos que se assumem liberais, consegue ser tão diverso em suas noções de mundo, tanto na teoria quanto na prática política, que não é possível unificar todos os que se auto intitulam “liberais” a partir de uma mesma compreensão do que seria o liberalismo, até porque muitos que se dizem liberais nem sabem definir o que pode vir a ser isso.

Teoricamente, pode-se perceber uma das primeiras noções de liberalismo na abordagem de Locke, de que, antes de vivermos em um Estado, quando não havia ainda a noção de governo e tal, já tínhamos uma noção de propriedade, de economia… Contudo, diante de disputas sobre a quem pertence um determinado terreno, por exemplo, não havia uma instância neutra, confiável, para decidir e ajudar a resolver as pendências. Assim, um dos motivos pelos quais se aderiu ao Estado, foi justamente ter um juiz imparcial para deliberar sobre o que é “meu” e o que é “seu”. Isso a ser feito a partir de normas, leis, e, para essas, criadas instâncias para elaboração e aplicação.

Esse ponto acaba sendo importante para uma das primeiras noções de liberalismo pois, se já havia economia e propriedade antes do Estado, parte-se da consideração de que a interferência do Estado nesses âmbitos deveria ser limitada, ele teria sido criado com um objetivo específico e, assim, somente na medida do necessário para manter esse objetivo é que o Estado deveria atuar.

Isso deixa transparecer o motivo pelo qual o dito abstratamente como “mercado” costuma ser favorável ao liberalismo e a políticos que se dizem liberais. O “mercado” quer liberdade para agir com a menor interferência do Estado possível, a não ser que ele, o “mercado”, precise do socorro do Estado. Aí então, essa prioridade da não interferência do Estado na economia fica mais relativizada.

De qualquer modo, é interessante salientar um ponto amplamente discutido quando se aborda o liberalismo, que é a noção de meritocracia. Para um liberal clássico, para se falar em meritocracia, deveria se igualar o ponto de saída das pessoas, igualar as condições, para, aí sim, poder atribuir ao mérito pessoal o ponto de chegada. Para um liberal clássico, assim, um sujeito que é filho de milionário e um sujeito que não tem nem o que comer ou onde morar, não têm igualados os pontos de saída, as oportunidades de formação, os desafios profissionais.

Desse modo, falar que ambos chegam depois de 30 anos onde quer que tenham chegado, somente a partir do mérito pessoal, é uma grande bobagem. Um liberal clássico, apesar de manter a ideia de que o Estado deveria se conter ao avançar na interferência sobre perspectivas econômicas e de propriedade, concordaria com programas sociais, por exemplo, para igualar as condições de saída na medida do possível, dando igualdade de competição.

Para além disso, ao longo da história de nosso pensamento político, há incontáveis definições do que seria liberalismo, muitos autores preferindo falar, assim, em “liberalismos”, no plural. Há liberais, ou, ainda, quem se intitule liberal, que não sabe nem quem foi Locke, por exemplo. Mas tudo bem! Não queremos aqui sermos a régua a medir quem tem e quem não tem o “direito” de se considerar liberal. E, na realidade, a noção de liberalismo fica mais clara quando fazemos perguntas específicas e contrapomos as respostas do liberalismo com as de outras noções políticas, como, por exemplo, as respostas do comunitarismo. E é esse exercício que irei fazer no meu próximo artigo, o de maio, para termos de um modo mais claro o aparato conceitual que irá dominar discursos e propagandas políticas de agora até as eleições.

Nessa presente oportunidade de reflexão, iniciada com o tema do liberalismo, o ponto no qual eu gostaria de tocar é justamente questionar, a partir dessa concepção, sobre até onde o Estado deve ir legitimamente, fazendo um contraponto da teoria com a prática.

Ao falarmos de Estado, falamos do dinheiro público, recolhido por impostos, atuando na vida das pessoas com algumas prioridades, que podem ser igualar o ponto de saída, por exemplo, conforme dito anteriormente. Se formos a partir dessa concepção, não seria aceitável, em um cenário hipotético, investirmos dinheiro público para o Estado pagar por “Viagra” ou botox pra uma classe específica de funcionários públicos. Nem leite condensado, picanha, e whisky. Mas esse é um cenário hipotético, jamais pensaríamos que, com recursos tão escassos como os do Brasil, o governo gastaria com coisas assim.

Outro cenário hipotético que igualmente entraria em conflito com um pensamento dito liberal a partir dos moldes clássicos é, por exemplo, se o Ministério da Educação estivesse liberando recursos para projetos mediante o pagamento de propina. Se pastores pedissem barras de ouro como contrapartida para liberar verba pública, e isso com o aval do Ministro da Educação e por indicação do Presidente da República, esse contexto político, além de ser crime e um escândalo, não conseguiria se dizer liberal sem que para isso invente um grande malabarismo conceitual.

Aos olhos do liberalismo clássico, investir em educação para igualar os pontos de saída seria uma tarefa genuína, inserindo Universidades e Institutos Federais Brasil adentro, bem como, tirar o Brasil do “mapa da fome”, atendendo por critério aqueles mais desiguais, como, inclusive é um princípio constitucional, de atender de modo desigual às partes desiguais do Brasil, os que precisam mais, atender mas, os que precisam menos, atender na medida do possível, para visar diminuir as desigualdades. Mas atender mais quem paga propina pro atravessador? Isso não é lá muito liberal.

O esforço da educação no Brasil apenas recentemente ganhou a força de políticas públicas intensas para chegar à população absorvendo universalmente o nosso povo, para diminuir, nesse segmento, na medida do possível, as desigualdades.

Quando vermos em uma escola a falta de energia elétrica, de água, de banheiro, de livros, de professores e todas as dificuldades que esse setor enfrenta dia a dia, lembremos que há a possibilidade de que o dinheiro para resolver isso tenha ido para ônibus superfaturados (corrupção), para a construção de escolas fake (corrupção), ou, ainda, para barras de ouro para pastores, que reinventam a adoração ao bezerro de ouro do Antigo Testamento, bezerro esse criticado até na Bíblia que esses pastores tanto obrigam a venda para as prefeituras que recebem a verba que é pública (corrupção).

Mas podemos apenas falar em haver a possibilidade, pois cada dia mais a quantidade de informações que é colocada sob sigilo de 100 anos pelo governo, dito liberal, é espantosa. Então, até que passem esses 100 anos, fiquemos no âmbito conceitual, torcendo, enquanto cidadão, que os demais eleitores consigam o aparato conceitual propício para a compreensão dos discursos e das propagandas políticas que avançam sobre as mídias e que tomarão as ruas muito em breve. Quem sabe isso possa ser de alguma valia em nossas decisões futuras.

Para encerrar, e, retomando a teoria, se, para Locke, um juiz imparcial para decidir o que é “meu” e o que é “seu” foi um dos motivos pelos quais se poderia ter aceito a invenção do Estado, e, se, aquilo que é verba pública pode, segundo notícias, estar sendo apropriado por pastores e familiares de poderosos, é o contexto justamente no qual precisamos ainda mais de um judiciário eficiente que possa travar a esculhambação geral na república. Vida longa ao STF.

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