Quando nos perdemos ao percorrer uma rota, um caminho, uma trilha e, desprovidos de GPS, ou de mapas para alguns indivíduos de gerações mais velhas, duas atitudes são imprescindíveis para evitar maiores transtornos e riscos. A primeira é evitar entrar em pânico. O pânico é paralisante. O medo dele advindo é perturbador. Impede ou torna excessivamente complexa a tomada de decisões. A segunda atitude é rever a trajetória para compreender como chegamos ao ponto em que nos encontramos. Retornar ao ponto de partida. Refazer a trajetória implica em atualizar mentalmente a topografia na qual nos movimentamos reconhecendo obstáculos, riscos e possíveis rotas alternativas.
Ao observarmos a cena nacional, constatamos que estamos em meio a uma crise sanitária, econômica, humanitária e política sem precedentes nos últimos trinta anos desde a saída dos militares do poder e a abertura política do país. Mas, afinal o que é isso? O que está acontecendo conosco? Onde foi que nos equivocamos? Quais são as razões que fazem a sociedade brasileira se mover por meio de ciclos políticos, sociais e econômicos que impedem a constituição de um projeto de desenvolvimento nacional consistente? Quais são as razões que mantêm viva no tecido social brasileiro a mentalidade messiânica que projeta num indivíduo a salvação nacional? O que leva setores da classe média brasileira a alimentarem preconceitos, bem como demonstrarem desprezo pelas classes sociais que conformam o Brasil profundo?
A intensidade destes questionamentos, e outros que poderiam ser situados implicam nos esforços a serem realizados para que compreendamos como chegamos a essa condição política caótica na atualidade. É imperativo que a sociedade brasileira se volte sobre si mesma, se tome como objeto para compreensão de suas fraturas, de suas inconsistências. Este é o desafio de um pensamento que vem promover constantemente o debate e manter a liberdade de expressão e entendimento de nossa condição brasileira de ser e se posicionar no mundo.
Este pensamento que nos vem conta com a prestigiosa contribuição de historiadores, de sociológicos, de juristas, filósofos, antropólogos, literatos, entre outros, em que, cada um em seu tempo contemplou a sociedade brasileira com brilhantes pesquisas, estudos e análises sobre nossa brasilidade, sobre nosso ethos. Talvez seja oportuno rememorar alguns destes nomes, reconhecendo que procedendo desta forma incorremos no risco de cometer injustiças ao não mencionar outros importantes intelectuais e pensadores.
Mas, mesmo diante deste risco, entendemos a necessidade de fazê-lo em função ausência de memória, dos limites educacionais que conformam a consciência coletiva nacional que desconhece seus pensadores, cujas contribuições para o reconhecimento de nossas contradições e de nossas possibilidades foram geniais e, talvez por isso, banidos pelas elites nacionais do imaginário social brasileiro, entre eles: Raimundo Faoro (jurista e sociólogo); Celso Furtado (economista); Álvaro Vieira Pinto (filósofo e médico); Sérgio Buarque de Holanda (historiador); Gilberto de Mello Freyre (ensaísta com análises de tendência sociológica, antropológica e histórica); Milton Santos (Geógrafo); Roberto Gomes (ensaísta, literato e filósofo); Florestan Fernandes (sociólogo).
Também é preciso que se avise o leitor que não temos a pretensão de apresentar, nos limites de uma crônica, respostas, ou análises completas às questões acima apresentadas, mas colocar em debate uma das variáveis societárias implicadas na conformação do tecido social brasileiro e que, talvez, possam contribuir para a ampliação de nossos horizontes teóricos, conceituais, analíticos e de ação diante das contradições societárias em curso. Sob tais pressupostos, partimos do argumento de que a conformação do Estado brasileiro não alcançou as prerrogativas constitutivas do Estado moderno, necessárias a um projeto de desenvolvimento nacional consistente, inclusivo das mais diferentes etnias que habitam o território continental deste país.
O Estado moderno é resultado de um conjunto de transformações econômicas, sociais e políticas ocorridas em fins da idade média, que suplantou um modo de produção assentada na subsistência econômica e, estruturado politicamente na fragmentação do poder político e jurídico de senhores feudais, de cidades autônomas e de monarquias absolutistas despóticas. Ou, dito de outro modo, o Estado moderno é a superação das formas de governo baseadas no poder absoluto de um homem, ou de um estamento (nobreza), pela afirmação do governo impessoal da lei. Afirma-se, sob tais condições, o Estado de direito, que em seus primórdios se estabelece pelo reconhecimento e afirmação do direito de propriedade e da liberdade de ação dos comerciantes, dos homens de negócios, da burguesia.
Em meados do século XVIII diante dos impactos da pobreza e da miserabilidade das massas de trabalhadores produzidos pela Revolução Industrial, mas, ao mesmo tempo, pelo reconhecimento do direito de expressão, do uso público e privado da razão promovido pelo movimento iluminista, o Estado de direito passa a reconhecer direitos individuais. Mas, é com as Revoluções burguesas, entre elas, a Revolução Inglesa, Americana e Francesa que se estabelece a compreensão de que é inerente ao Estado de direito, o reconhecimento dos direitos individuais e sociais. No bojo destes acontecimentos, que afirmaram o Estado de direito como a forma de governo que atua sob o imperativo da impessoalidade da lei, estabeleceu-se o sistema de pesos e contrapesos, as instituições e a interdependência dos poderes que conformam o Estado de direito.
Porém, o determinante é o fato de que o Estado de direito moderno europeu foi o resultado de séculos (do século XVI aos dias atuais) de enfrentamentos, de lutas, de revoluções sociais que o conformaram como racionalidade ético-política absoluta, derivada da racionalidade ético-política subjetiva. Ou seja, o Estado europeu foi resultante do reconhecimento após lutas e enfrentamentos por parte dos indivíduos da primazia do espaço público, sobre o interesse privado, de laços de confiança e de um sentimento comunitário que enseja a ideia de um destino comum, que se traduz na vontade de desenvolvimento civilizatório consistente. Foi este modelo de Estado forjado no seio da velha Europa que se espraiou para os demais continentes com as grandes navegações e, com as distintas formas de colonização.
No que concerne à conformação do Estado brasileiro, a despeito de sua matriz europeia moderna, ressente-se até os dias de hoje das heranças advindas de seus 322 anos de colônia de Portugal. Nestas generosas terras, que segundo Pero Vaz de Caminha “em que se plantando tudo dá”, o Estado não se constitui a partir da decantação das contradições sociais na afirmação de um espírito de comunidade de pertencimento e de confiança como afirmação do interesse público por excelência.
Aqui, na terra de Santa Cruz, do pau brasil, dos canaviais e dos cafezais, o Estado nasce anômalo como Estado de direito dos senhores de engenho, dos barões do café. Nasce como Estado de direito de exercer o poder soberano de fazer morrer e deixar viver sobre escravos negros e sobre índios embrenhados nas matas. Mas, seu poder soberano se estende também sobre os mamelucos, os mestiços, os sem “eira e nem beira”, sobre o “negredo”, sobre o “zé povinho” e tantas outras denominações pejorativas e preconceituosas ainda presentes sobre certos segmentos sociais.
Este Estado capenga de direito das elites coloniais era, em sua gênese, patrimonialista. Desconsiderava o interesse público nacional. Ou, dito por reverso, apropriava-se dos bens públicos em benefício privado. Era um Estado fisiológico, distribuindo para as classes subalternas (capatazes, capitães do mato, informantes) afiliadas a elite colonial cargos, pecúlios, favores em detrimento das precárias condições de vida das massas majoritariamente analfabetas constitutivas da sociedade brasileira naquele contexto.
Ou seja, as elites que conformaram as bases do Estado brasileiro não alcançaram, em suas origens, a condição de um Estado liberal de direito, não tinham apreço pelos ideais liberais que pressupõem a distribuição e afirmação do direito de propriedade privada condição sine qua non para o estabelecimento da igualdade de condições como ponto de partida na conformação do tecido social na moderna concepção capitalista. Estavam desprovidas do apreço pelas liberdades de expressão e de ação dos indivíduos e, muito menos, pelo estabelecimento de laços comunitários de confiança que afiançassem um projeto de desenvolvimento nacional inclusivo em relação a diversidade étnica presente em território brasileiro.
Sob tais pressupostos, a necropolítica é o fundamento constitutivo da razão de Estado brasileira. À serviço de interesses setoriais específicos, o Estado brasileiro não hesita em utilizar a força, em promover a violência e desestabilizar as instituições, em negar e até mesmo retirar direitos de parcelas de sua população. A trajetória republicana do Estado brasileiro é o registro fidedigno das estratégias necropolíticas das elites brasileiras sobre as demandas de projetos de desenvolvimento que contemplassem as demandas de amplos setores da sociedade brasileira. “Em 129 anos de República, o Brasil teve até hoje 36 governantes – apenas um terço deles (12) foi eleito diretamente e terminou o mandato. De 1926 pra cá, a proporção é ainda mais absurda: dentre 25 presidentes, apenas 5 foram eleitos pelo voto popular e permaneceram no posto até o fim: Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Lula, FHC e Dilma (seu primeiro mandato). Recentemente, Dilma Rousseff se juntou a outro clube restrito com 6 colegas: o dos presidentes depostos via impeachment ou golpe. São eles: Washington Luís, Júlio Prestes, Getúlio Vargas, Carlos Luz, João Goulart e Fernando Collor.”
Ou seja, promover golpes, discursos messiânicos, posturas populistas são estratégias corriqueiras destas elites no controle do Estado. Porém, em determinados contextos em que se promovem maior distribuição de renda para os setores mais marginalizados da sociedade, promovendo a saída de setores sociais de sua condição de miseráveis para a condição de pobres, as estratégias da elite para o controle do Estado e da população se radicalizam. É neste momento que a moralização da coisa pública assume a centralidade do debate numa ampla cruzada nacional de combate contra a corrupção identificada num partido, ou em personagens políticos. Ato contínuo, golpes jurídicos, militares são promovidos. Conclama-se a família, os cristãos, os evangélicos, os anjos, os santos, os demônios, os homens de bem para salvar a nação, que paradoxalmente nunca foi deles, a não ser em momentos em que é preciso preservar os interesses das elites. É também nestes momentos que se conclamam os conservadores, os liberais (mesmo que não se encontre vestígios suficientes de liberalismo político e econômico entre os patrimonialistas e fisiólogos arautos da constituição do Estado e da sociedade brasileira). .Enfim, convocam-se os patriotas numa cruzada contra o socialismo, contra o comunismo (mesmo que grosso modo a sociedade brasileira não saiba, não tenha estudado suficientemente o que é isso). Mas, não esqueçamos por fim que também é nestes momentos que se disseminam discursos fascistas, preconceituosos em setores da sociedade brasileira usada para compor esta grande frente de salvação nacional.
Este é o circo de horrores necropolíticos presente na estrutura absolutista do Estado das elites brasileiras, que se manifesta novamente. Nada de novo no horizonte, a não ser a voracidade dos interesses de grupos que se locupletam com a precariedade das condições de vida da população brasileira, com seu analfabetismo funcional, com sua desconfiança em relação ao Estado, aos políticos, aos empresários. Afinal, a violência sempre foi a marca distintiva desta sociedade. Sob tais pressupostos, o governo do capitão messias (com “m” minúsculo, pois com “M” maiúsculo somente o filho do Dono, daquele que é a “causa causante incausada” do universo) nada mais é do que uma variável desta terra de ninguém, em que campeiam a desconfiança, o niilismo e a ausência de disposição de constituição de um país civilizado, desenvolvido a altura dos desafios de seu tempo.
Enfim, uma pátria antropofágica, que devora seus filhos, condena suas crianças, seus adolescentes e jovens a reproduzirem a medíocre e mísera vida de seus pais ganhando salários de miséria, assistindo novelas, futebol, jornal nacional e, nos domingos, cumprindo o sagrado ritual do churrasquinho e da cerveja… para na segunda-feira retomar o ciclo semanal que, após algumas décadas, os levara ao descanso eterno sem ter a oportunidade de compreender o que poderia ter sido uma vida digna no seio de uma sociedade da confiança consciente dos desafios de garantia do desenvolvimento.
Afinal, o que é isso? Não se trata de um posicionamento de direita, nem de esquerda, muito menos de centro. É um convite para pensar profundamente o Estado brasileiro a partir da constatação de que não há como voltar ao ponto de origem, na medida em que ele não existe de forma suficiente para a retomada de um projeto consistente de nação. Apenas podemos constatar alguns elementos que demonstram suficientemente as peculiaridades do Estado tupiniquim: a dissociação entre liberalismo jurídico-político e Estado em detrimento da correlação entre absolutismo e Estado. Isso nos lança diretamente no olho do furacão: se o Estado brasileiro não foi constituído a partir dos pressupostos liberais, sequer podemos falar de uma concepção moderna de Estado de direito. Tratamos de outra coisa que talvez esteja no limiar entre o Estado absolutista e o Estado de direito, mas, certamente, pende mais para o absolutismo, na medida em que a concepção moderna de Direito pressupõe um tratamento isonômico entre os cidadãos na aplicação da lei (igualdade jurídica) e que a maioria dos brasileiros sequer foram içados, da condição de servos, à condição de cidadãos.
Entretanto, até mesmo a moderna concepção de Estado de direito fracassou e a contemporânea concepção de Estado democrático de direito, cunhada em meados do século XX como resposta aos fatores que condicionaram às duas guerras mundiais, não atendem suficientemente às necessidades do bem comum. Dito de outro modo, a não efetivação dos direitos prometidos por esses dois modelos de Estado gera desconfiança e impede a constituição de um projeto de desenvolvimento nacional que atenda aos ideais de cidadania, dignidade humana e outras expressões tão propagadas, mas tão pouco implementadas. Daí as acertadas análises de Giorgio Agamben (filósofo e jurista) sobre o estado de exceção permanente, a crise como técnica de governo, o campo de concentração como paradigma de governo, o homo sacer como resultado do exercício do poder soberano e outras.
Assim, a tarefa do pensamento que vem apresenta-se como empenho cotidiano em constituir outras possibilidades a partir do reconhecimento das contradições e fraturas que constituem o tecido social e institucional em que nos inserimos.
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