Opinião | Os problemas da sociedade começam e terminam nas mãos dos donos das cidades

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Era uma vez, a história conta que… o presente do Brasil é feito um espelho. Faz pouco que coronéis e barões determinavam quem poderia fazer parte da comunidade e o local de moradia de cada um dos cidadãos. Atualizado o tempo, se você reparar bem, os critérios de pertencimento de uma cidade, a ocupação de espaços, segue uma lógica perversamente semelhante de poder e tutela dos tempos de colônia. Hoje, os municípios, que exibem seus cartões postais com orgulho, provocam asco, escondendo aqueles habitantes de vida sofrida em áreas periféricas do apogeu.

Boa parte dos problemas, que a realidade brasileira enfrenta atualmente, está na evidente dificuldade de garantir, aos humanos mais simples, moradia segura, de qualidade e acessível. Desde os tempos das cavernas ter um abrigo para noites e momentos de perigo constitui-se em objetivo da nossa espécie. A evolução acrescentou outras preocupação, é verdade, porém, ter um lar é a primeira necessidade que força uma imensa massa trabalhadora a deslocamentos imensos, extensas horas de lavoro e questionáveis situações para garantir o sustento. Não existe respeito, acolhimento ou chance de vida para quem o acaso dos dias empurrou para a rua, com a sarjeta como travesseiro, as marquises feitas de única proteção.

Curiosamente, são os mais pobres, homens e mulheres que (fizeram e) fazem uma cidade o que ela é. As mãos na construção civil, os bolsos dos pagadores de impostos, permitiram o florescer o vale verdejante, às margens do rio que lhe da vida. Suas casas humildes, que ocupavam as bordas do correr do Rio Itajaí-Açú, construídas intenso esmero, cada pedra assentada com carinho, forçadamente deixaram de existir com a força econômica higienizando a paisagem. Se na fase de ocupação imigratória os colonos também não se viam como donos, mas, certa maneira, como guardiões, cuidando do que era comum, partilhando o espaço e a vida, hoje este sentimento não existe mais. As taxas condominiais empurram para o outro a responsabilidade de zelo por áreas comuns e ao Estado a missão de zeladoria pública.

Todas as transformações não correram assim, de uma hora para outra. Com o tempo, naturalizamos os gigantes de concreto e aço, erguidos pelas mãos invisíveis do capital. As grandes construtoras, com suas torres altivas e suas promessas de modernidade, chegaram como quem não quer nada, mas querendo tudo. Tomaram conta dos terrenos, dos ares, das vistas. Suas sombras imensas ocultaram o sol das casas humildes, e seus sons maquinaram uma sinfonia de progresso que abafou a voz das antigas ruas.

O dinheiro – e o direito de sobrepor tudo as vontades do mimado capital – dobra os joelhos da cidadania. A realidade de 10, 15 anos, já não existe e, certamente, nunca mais retornará. As escolhas de habitação em centros regionais, como é o caso de Blumenau, que eram justificadas, até poucos dias, por necessidade de indústrias, agora deveria ser repensada para adequar a realidade deste tempo. O varejo de pequenos negócios enfrenta a globalização das vendas que, em poucas horas, atravessam o mundo para chegar na porta do cliente.

Escritórios e diversos ambientes de negócios deixaram de exigir a presenta física de colabores, alterando prioridades de consumo. A comida, que antes lotava restaurantes, agora é acessada por clicks e produzidas em diminutas cozinhas escondidas.

Neste caminho, não existe outra alternativa para a sustentabilidade das cidades, como conhecemos até aqui, que uma ampla e profunda reforma urbana. Já passou da hora de incluir as pessoas ao invés de empurra-los para bairros escondidos e distantes. É um tabuleiro de xadrez bastante complexo? Sim, é verdade! Mas, ou em algum momento fazemos dos cidadãos as peças fundamentais neste jogo ou, infelizmente, encontraremos ali na esquina seguinte o xeque-mate, um imenso caos social.

Os donos do mercado imobiliário, com suas mãos pesadas, moldaram as cidades à sua imagem e semelhança, erguendo blocos uniformes, alinhados com precisão matemática, mas desprovidos de alma. O que antes era um mosaico vibrante de culturas e histórias, tornou-se um amontoado de blocos frios, onde cada apartamento é um cubículo, e cada morador, uma peça de tons branca e preta.

É inegável que essas construções trazem empregos e movimentam a economia. Mas a que custo? E só existe esta caminho para a construção civil? O preço é pago não apenas em moeda corrente, mas em algo muito mais valioso: a identidade da cidade, a qualidade de vida de seus habitantes, e a própria essência do que significa viver em comunidade.

Recentemente, por opção, escolhi estar mais próximo da Foster Pet Place. Boa parte das coisas faço sem o uso de carro depois que passei a morar na região central. Tudo mudou para melhor no que diz respeito a saúde. Caminho mais, deixando sedentarismo pra lá, posso regular meus horários e até hábitos alimentares registraram significativos ganhos. Seria bom demais se o planejamento urbano permitissem que as ruas, lotadas conversas, à sombra das árvores, abafassem o ruído incessante do trânsito.

Neste tempo em que as tragédias climáticas nos impõem reflexões urgentes, é necessário repensar como estamos construindo nossas cidades. As enchentes que devastam, os deslizamentos que soterram, são também reflexo de um planejamento urbano falho, onde o lucro imediato se sobrepõe ao bem-estar a longo prazo. A ganância que ergue arranha-céus é a mesma que ignora a necessidade de áreas verdes, de espaços de convivência, de uma arquitetura que respeite o meio ambiente e a história local.

Como disse, reafirmo, mais do que nunca precisamos de um novo pacto social, onde as cidades sejam construídas de maneira inclusiva, sem donos, mas com cidadãos conscientes e participativos. Uma cidade que respeite suas origens, que valorize seus habitantes, e que esteja preparada para enfrentar os desafios… da natureza, de solidariedade, e novos hábitos e necessidades humanas.

Só com uma reforma urbana será possível redescobrir a verdadeira essência das cidades. Certamente, não como um produto do capital, mas como um lar compartilhado, onde todos têm o direito de pertencer e de florescer. A realidade ensina que estamos nas mãos dos grandes construtores, os donos das cidades. Continuar assim é como assinar um contrato de exclusão e desigualdade, onde os municípios são mercadorias, e os cidadãos… bom, apenas simples e meros consumidores.

Tarciso Souza, jornalista e empresário

2 Comentário

  1. O mecanismo eleitoral é impulsionado por empresários, indiferentes as necessidades coletivas, que interferem e cobram o apoio financeiro e estrutural das campanhas do legislativo e executivo.

  2. A voraz especulação imobiliária descaracteriza o território, promove a destruição ambiental, tira a paz da vizinhança no período da construção, cria a ‘valorização’ do bairro subindo os preços de aluguel, iptu, etc. expulsando moradores antigos, sobe a inflação, coloca pressão nos órgãos públicos muitas vezes por meios escusos…
    É um ciclo insustentável onde poucos ganham e o coletivo perde. Basta ver que o gasto com moradia ultrapassa 50% da renda de quem ganha até 3 salários mínimos (Dados do IBGE: PNAD, CENSO). Em um pais no qual a população cresce num ritmo cada vez menor, até o ponto de estagnar em várias capitais e estados, qual a necessidade de ter um ritmo de construção civil tão acelerado ? Isso não serve a nada a não ser mergulhar as cidades no caos urbano e o pais no caos social.

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