“Meu partido, é um coração partido, e as ilusões estão todas perdidas”, os versos de Cazuza ressoam profundamente e descrevem, como uma composição atemporal, o cenário dos últimos dias. Há uma sensação de perda, uma mistura de desilusão e amargura que permeia o ar. O escândalo envolvendo o ex-Ministro Silvio Almeida fere e entristece. Dói muito quando figuras de renome, especialmente intelectuais brilhantes, têm suas trajetórias marcada por denúncias graves. Não podemos ignorar as acusações, nem relativizar o impacto sobre as vítimas. Da mesma maneira, não há espaço para defesas apressadas ou julgamentos antecipados. É um momento que exige de nós, mais do que nunca, um olhar atento, crítico e, acima de tudo, humano.
O assédio é uma ferida aberta na sociedade. Longe de ser uma novidade, ainda lamentamos que coletivamente não aprendemos como impor o fim neste tipo de crime. Especialmente para mulheres, que já carregam em seus corpos as cicatrizes, muitas vezes, parece que o horror é prolongado e eterno… geração seguida de geração. Como um teatro grego, que ensaia a realidade, a tragédia invade todos os lados desta história, trocando os personagens, as épocas, e insistindo em reproduzir o pior.
O lado da mulher, da vítima, é preciso dizer mais uma vez, é infinitas vezes mais dolorido. A sociedade, com sua tendência a questionar a veracidade das denúncias, revitimiza aquelas que já carregam o fardo de terem seus corpos invadidos e transformados em objetos do desejo de outro. A dor de uma mulher que enfrenta o assédio é incomensurável, e imaginar minha mãe, minha esposa ou minha irmã em uma situação dessas causa um nó no estômago.
Nesta história, envolvendo o Silvio Almeida, o outro lado, acusado de assediador, está uma das mentes mais geniais que o Brasil produziu. Um homem negro, intelectual de prestígio internacional. Um alguém que, quando pouco – e se a pele fosse menos retinta – deveria receber o benefício da dúvida até que a justiça seja feita. Porque, enquanto refletimos sobre as complexidades do caso – o assédio e ser um homem negro em uma posição de poder -, é imperativo lembrar a dor e o trauma que qualquer desfecho trará.
Epicteto, o filósofo estoico, deixou entre tantas lições uma frase que diz assim: “não são as coisas que nos perturbam, mas as opiniões que temos delas”. A visão que a sociedade carrega de um homem negro no poder é, frequentemente, distorcida por preconceitos históricos, sociais e raciais. Homens como Silvio, quando chegam a postos de destaque, sabem – ou deveríamos saber – que carregam nos ombros mais do que seus próprios feitos. Nós, em nossas costas, está o peso das expectativas, das dúvidas e, frequentemente, do desejo de muitos que o fracasso nos pegue desprevenidos e lance seu abraço brutal.
Percebe que minha inquietação não está necessariamente nos detalhes do escândalo, pois estes ainda estão sob investigação, mas sobre a condição geral. Ainda que mulheres fortes sejam formadas, vencemos milênios e não geramos segurança, respeito, em mínima qualidade, igualdade. Também reflito sobre os homens negros que ocupam posições de poder em uma sociedade que, historicamente, os marginalizou e os colocou sob constante vigilância.
O estoicismo nos convida a olhar para a situação de forma desapegada, sem ser tragados pelas paixões ou preconceitos. No entanto, até para o mais sereno dos filósofos, o cenário atual suscita um questionamento profundo: como é possível avançar em um terreno onde as armadilhas parecem ser multiplicadas para aqueles que ousam ascender?
“O que está sob seu controle? Sua vontade. E o resto? Nada mais”. Marco Aurélio em suas “Meditações” já deixava pistas das dificuldades do que é sobreviver. E, aproximando estas palavras deste escândalo, é possível construir semelhanças, apontar vulnerabilidades gêmeas entre todas as mulheres e os homens pretos. Pense comigo: não apenas suas ações são minuciosamente observadas, mas suas reações a essas observações, seus gestos, suas palavras, suas roupas. Tudo precisa ser cuidadosamente calculado para evitar que o preconceito e as armadilhas da sociedade arranquem a dignidade e a reputação. Ainda que a vida pública seja um exercício diário de cautela, o abismo, como o que agora se abre diante de Silvio Almeida, parece inevitável.
E isso não significa minimizar as acusações ou desviar o foco da gravidade do assédio, mas sim reconhecer que o caminho é mais estreito. É como se estivéssemos em uma corda bamba. Cada gesto, cada palavra, é passível de interpretação maliciosa, especialmente quando inserido em um contexto político tão polarizado.
Permita-me insistir na reflexão sobre a trajetória do ex-Ministro. Um homem negro, intelectual brilhante, cuja obra acadêmica não será diminuída, ainda que as acusações sejam confirmadas. Reconhecido como advogado habilidoso e uma lucidez cortante sobre as dinâmicas do racismo estrutural no Brasil. E aqui está o paradoxo: o mesmo sistema que ele tanto combateu, agora parece estar entrelaçado em seu destino. Ao mesmo tempo em que muitos o apoiaram, outros esperavam sua queda. Seria o que Friedrich Nietzsche definia como “amor fati”? Este amor ao destino que devemos encarar o que vem pela frente com uma aceitação resignada, mas nunca passiva?
Novamente recorro a Marco Aurélio: “a injustiça é impiedade”. Em um caso como este, há injustiça por todos os lados – para a mulher que, se violentada, precisa lidar com o trauma e a constante dúvida da sociedade, e para o homem negro que, se inocente, já está condenado pelo tribunal da opinião pública.
Caso as acusações contra Silvio Almeida forem confirmadas, será um golpe doloroso para todos que admiram como pensador, como humanista e sua luta contra o racismo. Não apenas para ele, mas para a sociedade que tantas vezes colocou nele a esperança de um futuro mais justo. No entanto, a dor maior não será a da queda de um ministro, mas das mulheres que tiveram sua confiança traída e seu corpo violado.
Ao mesmo tempo, se houver uma reviravolta e as acusações forem desmentidas, isso não apagará a mancha que já se espalhou. A reconstrução do ex-ministro será bastante difícil e custosa. A vida pública, como disse, é uma arena cheia de armadilhas.
O escândalo de Silvio Almeida traz à tona a complexidade de ser um homem negro em uma posição de poder no Brasil, ao mesmo tempo que expõe as feridas sociais que ainda sangram em nossa sociedade. Epicteto disse que devemos nos concentrar no que está ao nosso alcance, e o que está ao nosso alcance agora é uma reflexão honesta. Não sobre a culpa ou inocência de um homem, mas sobre as estruturas que nos cercam e os preconceitos que persistem.
Cazuza estava certo ao falar de ilusões perdidas. Talvez muitos de nós tenhamos, em algum momento, acreditado que intelectuais como Silvio Almeida estivessem a salvo das armadilhas da vida pública. Mas a realidade nos mostra que não há imunidade, especialmente para os que carregam a pele preta e ousam ocupar espaços de poder.
Tarciso Souza, jornalista e empresário
Não entro na discussão do tema em questão, mas só num posicionamento do escriba.
“O país está dividido”
Isso só na cabeça de uma minoria.
Veja e considere:
Se o Povo Brasileiro estivesse dividido, no Dia Independência, Brasília teria um grande público junto ao Presidente,como foi visto em São Paulo.
Raciocine….