Com alguma frequência achamos estranhas algumas das leis aprovadas pelo nosso legislativo nas três esferas. Se tem notícia de que por vez ou outra uma lei foi aprovada não por ser justa e sim para favorecer financeiramente algum grupo e, ainda, mediante retribuição financeira a quem votou a favor. Mas fica a questão, como saber se uma lei é justa?
Para sabermos se uma ação é justa, o critério é ela estar de acordo com a norma. Mas, para sabermos se a própria norma é justa, os pensadores ao longo dos séculos divergem sobre o critério a ser utilizado. Seria justa a norma que é útil para a organização da sociedade? Seria justa a norma que favorece a paz? A norma que possibilita que se realize alguma noção de felicidade da comunidade?
Ciente de que há uma necessidade de um critério a partir do qual pensarmos a questão de uma norma ser justa ou não, é oportuno que revisitemos o posicionamento de Kant, filósofo alemão que relacionou a justiça com a liberdade.
Mas se, para uma norma ser justa ela deve potencializar a liberdade, de que modo uma norma pode me coagir a fazer algo que eu não queira? Seria, portanto, essa norma injusta?
Diante disso, é importante esclarecer o que se entende por liberdade.
Liberdade não é fazer o que se quer. Se tenho vontade de dormir o dia todo e opto por essa decisão, não estarei sendo livre, estarei sendo escravo de meus sentidos, de minha animalidade. A liberdade tem a ver com a capacidade de agir de modo independente de minhas inclinações, de minhas preferências privadas, ou, ainda, do que nos dizem para fazer. Nós mesmos encontramos em nossa própria reflexão o que deve ser feito.
Em Kant o ser humano é considerado como um fim em si mesmo, tendo em vista que ele é ao mesmo tempo o autor da lei moral e aquele que cumpre a mesma lei moral que elaborou. Ele é autônomo no sentido mais próprio do termo. E isso, essa possibilidade reflexiva inerente à nossa condição humana confere, para esse autor, dignidade ao ser humano.
Desse modo, o ser humano não poderia ser considerado como um mero meio para outro fim. Deveria sempre ser considerado como um fim em si mesmo. Coisas tem preço e podem ser mero meio. Pessoas têm dignidade.
A noção de dignidade na antiguidade e na idade média era utilizada para distinguir pessoas. Tinha dignidade o rei, autoridades, alguns sobrenomes, algumas profissões. A dignidade era algo que se conquistava, que se perdia.
Com a modernidade, se tem uma noção de dignidade ampliada, que em vez de distinguir, igualava as pessoas. Esse se tornou inclusive um princípio a nortear concepções de legalidade e de justiça das normas em várias Constituições.
Como exemplo da legitimação dessa alteração promovida por Kant na noção de dignidade temos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, iniciando pelo Art. 1º com a consideração de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Ou seja, já nascem com dignidade, concepção essa bem distinta do que se pensou outrora. Nascem com dignidade e não podem ser considerados mero meio, não são coisas.
A dignidade humana é algo tão importante para Kant, tendo relação direta com a liberdade de dar-se a própria lei, que se relaciona com a possibilidade de consideração de uma norma como justa. Como saber se uma norma é justa? Para Kant, tendo-se por critério a promoção da liberdade, que é o exercício da autonomia, cuja capacidade inerente ao ser humano lhe confere dignidade.
Tendo em vista que nenhuma questão individual afetaria a tomada de decisão, de modo que qualquer sujeito racional tomaria a mesma decisão diante da mesma situação, se uma preferência individual de ação está em desacordo com uma decisão livre sobre o que fazer, posso ser coagido pela lei e ainda assim essa coação estar em acordo com a liberdade, ou seja, essa lei ser justa.
A própria elaboração da lei, assim, em tese, deveria ser redigida na medida em que potencializa experiências reais de liberdade dos sujeitos e a promoção do desenvolvimento do uso da razão dos seres humanos, tendo em vista que é a partir do desenvolvimento do uso da razão é que alcançamos maturidade suficiente para a reflexão livre e as decisões éticas.
Nesse sentido, quando temos uma lei sendo aprovada no Congresso, na Assembleia Legislativa ou na Câmara de Vereadores e que estranhamos os seus pressupostos, cabe o questionamento: essa lei é justa de fato? Ou apenas consideramos justo tudo aquilo que o soberano disser que é justo independente do que seja? Reconhecemos a legitimidade do conteúdo da lei, ou damos legitimidade implícita a toda e qualquer lei que tenha sido aprovada por ter seguido o formato, o ritual?
Ao invés de apenas aceitarmos as leis como se fossem todas justas ou, ainda, de ignorar o debate a partir do descrédito no cenário político institucionalizado, em meio a tantas manchetes de projetos de lei cada vez mais estranhos, dediquemos um tempo para pensarmos: qual o critério que temos para considerarmos uma lei como justa?
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